O jornal The Lancet, um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo, anunciou em julho a criação de um comitê para estudar a solidão e o isolamento social.
Num editorial sobre o tema, os responsáveis pela publicação destacaram como esse incômodo ganhou protagonismo nos últimos anos — e se mostra cada vez mais como um fator negativo para a saúde do corpo e da mente.
“Conexões sociais empobrecidas são associadas a um risco aumentado de doenças cardiovasculares, hipertensão, diabetes, infecções, declínio cognitivo, depressão e ansiedade”, listam os autores.
A ideia do comitê, que deve começar a se debruçar sobre o tema em breve, está justamente em definir o que é a solidão, como ela pode ser identificada e quais são as principais formas de combatê-la, segundo as melhores evidências científicas disponíveis.
Mas essa é apenas uma entre diversas iniciativas relacionadas ao assunto que foram anunciadas nos últimos anos. Os governos de Reino Unido e Japão, por exemplo, criaram “Ministérios da Solidão” em 2018 e 2021, respectivamente.
Já o médico Vivek Murthy, o atual US Surgeon General — uma das principais autoridades de saúde dos Estados Unidos —, declarou em maio deste ano que se sentir só equivale a fumar 15 cigarros ao dia em termos de prejuízos à saúde.
Mas por que a solidão ganhou tantos holofotes recentemente?
Uma das principais dificuldades quando pensamos no impacto da solidão está em definir exatamente o que é esse incômodo.
“O sentimento de solidão é uma experiência individual. Não basta estar isolado, afinal muitas pessoas que estão sozinhas não se sentem necessariamente solitárias. E, na contramão, tem gente que está no meio de outros indivíduos, mas isso não é garantia que elas se sintam conectadas”, reflete o psiquiatra Lucas Spanemberg, pesquisador do Instituto do Cérebro da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).
“A solidão é uma sensação de desconexão, de não pertencimento a um grupo social, que traz implicações emocionais e comportamentais — e isso está relacionado a uma série de desfechos negativos do ponto de vista da saúde mental e física”, complementa ele.
Essa relação entre solidão e prejuízos ao corpo e à mente está bem documentada numa série de pesquisas.
Uma delas, feita em 2010 na Universidade Brigham Young, dos Estados Unidos, revelou que indivíduos com relações sociais fortes têm 50% mais chance de sobreviver por mais tempo em comparação àqueles que interagem menos com o meio onde vivem.
E a necessidade de manter essa conexão está praticamente inscrita na origem de nossa espécie, como explica Spanemberg.
“Os seres humanos foram programados geneticamente para viver em sociedade e integrar grupos. Durante os primeiros anos de vida, somos muito frágeis e indefesos, portanto precisamos de um núcleo coeso capaz de proteger a prole”, diz o médico, que também atua no Hospital São Lucas, em Porto Alegre.
“E essa coesão social forma famílias, grupos, sociedades, países…”, lista ele.
O especialista também chama a atenção para um acompanhamento de centenas de indivíduos realizado pela Universidade Harvard, nos EUA, há 80 anos.
“Os autores desse levantamento observaram que o fator mais importante para sentir-se feliz no final da vida não era sucesso financeiro, emprego dos sonhos, fama ou dinheiro, mas, sim, coesão social”, diz Spanemberg.
“A grande variável associada à sensação de felicidade foi justamente ter relações importantes e significativas ao longo da vida”, completa ele.
A enfermeira Juliana Teixeira Antunes, do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, em Januária, destaca que durante muito tempo a solidão esteve relacionada aos mais velhos, como se fosse um fenômeno que ocorresse apenas nessa faixa etária.
De fato, os idosos podem se sentir desconectados com maior frequência e geralmente apresentam mais dificuldade para se adaptar e acompanhar as novidades.
A morte de familiares e amigos da mesma geração deixa mais sozinho quem fica, explicam os profissionais de saúde ouvidos pela BBC News Brasil.
“Mas hoje nós identificamos a solidão em qualquer fase da vida”, observa ela.
Durante o trabalho de mestrado, Antunes decidiu estudar como esse incômodo afeta os adolescentes brasileiros.
“Esse é um momento de vida caracterizado pelo convívio social, pela criação de vínculos e de relações”, caracteriza a pesquisadora. “Mas, infelizmente, hoje em dia a solidão afeta um número considerável de jovens.”
No levantamento, que usou inquéritos epidemiológicos nacionais de 2015, 15,5% dos adolescentes entrevistados relataram que se sentiam solitários “na maioria das vezes” ou “sempre”.
“Um dos fatores que parece contribuir para esse cenário é a violência familiar, as agressões e o autoritarismo dos pais”, lista Antunes.
“Por outro lado, a prevalência de solidão era baixa entre os jovens que relataram hábitos mais constantes, como fazer refeições em família com frequência, ou ter o apoio de pais que se preocupam e conversam com eles”, detalha ela.
Apesar de ser tradicionalmente vinculada aos mais velhos, solidão afeta qualquer faixa etária
Mas por que a solidão virou um assunto urgente de saúde pública nos últimos anos?
Para a psicóloga clínica Dorli Kamkhagi, do Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP), há vários fatores que contribuem para este cenário.
“Acabamos de sair de uma pandemia de covid-19, em que havia a necessidade de isolamento social, por exemplo”, contextualiza. “Mas agora não estamos mais na crise sanitária e, mesmo assim, algumas pessoas não querem mais frequentar lugares ou fazer encontros presenciais.”
“Mas é totalmente diferente sentir o toque, ver as coisas, andar no parque…”, reflete ela.
Em outras palavras, a necessidade de ficar em casa para evitar o coronavírus fez com que muitos encontrassem nesse ambiente uma zona de conforto, da qual não querem sair agora.
Antunes destaca que, aos poucos, a solidão gera outros sentimentos negativos.
“Com o passar do tempo, surge o medo, a angústia, o sofrimento…”, diz.
O editorial do The Lancet aponta que a solidão é “um produto de como as sociedades e o mundo ao redor de nós estão organizados”.
Alguns autores chegam a citar que muitas cidades são construídas com base em “ambientes solitarizantes”.
“Nosso ambiente físico, ditado pelo planejamento urbano, pode impedir a conexão social se não permitir interações e engajamento”, diz o texto.
Os autores ainda destacam outros ingredientes que contribuem para esse contexto.
“O uso de redes sociais, com as promessas de aproximar as pessoas, tem sido associado a um aumento da sensação de desconexão social”, lembram eles.
“Austeridade, pobreza, racismo e xenofobia também causam desigualdade e sentimentos de exclusão. As tendências sociais para o individualismo, em detrimento do coletivismo e do sentimento de pertencimento, elevam o risco de experimentar sentimentos de solidão.”
Seres humanos são geneticamente programados para viver em grupo, dizem especialistas
Mas será que é possível identificar a solidão e interferir antes que ela provoque prejuízos à saúde?
Para Kamkhagi, o desafio está em saber diferenciar solitude (estar só voluntariamente) e solidão.
“Reservar momentos para ficar sozinho é importante e saudável”, diz a psicóloga.
“O problema é quando você fica o tempo todo desligado do resto do mundo e começa a desaprender os códigos e as condutas das relações sociais”, complementa ela.
“Na solidão, o isolamento não está mais a serviço de uma experiência de bem-estar, como uma leitura ou o contato com a natureza, mas passa a apresentar padrões prejudiciais, como ficar apenas em casa, abusar de álcool e outras drogas e se desconectar do restante da vida”, concorda Spanemberg.
O psiquiatra acrescenta que a solidão geralmente acontece junto de descuidos com a própria saúde e a aparência, perda de autocuidado e irritabilidade nos momentos em que é necessário ter contato com o outro.
Em alguns casos, a própria pessoa consegue identificar esses sinais de alarme — em outros, é necessário o auxílio de um familiar ou colega próximo, que pode observar padrões e prejuízos na vida da pessoa solitária.
Diagnosticado o problema, é possível lançar mão de algumas intervenções e cuidados que previnem a evolução de um isolamento social voluntário para algo ainda mais grave, como quadros de ansiedade e depressão.
“Pode ser necessário realizar uma avaliação ou um acompanhamento psicológico ou psiquiátrico”, sugere Spanemberg.
Aos poucos, com o auxílio de um profissional de saúde, é possível retomar as atividades sociais e o vínculo com a comunidade.
“Podemos começar devagar, com uma caminhada leve no parque, ou o envio de uma mensagem a um amigo para perguntar como ele está e dizer que está com saudades”, exemplifica Kamkhagi.
“Essas pequenas atitudes permitem reabrir o campo dos relacionamentos e lidar melhor com a solidão”, conclui a psicóloga.