Ana é professora de ensino médio, mas a proximidade que ela tem com os alunos adolescentes foi de pouca serventia para quando seu próprio filho entrou nessa fase da vida. O uso intenso de telas e os questionamentos comuns a essa faixa etária têm tornado muito difícil a convivência de mãe e filho, hoje com 14 anos.
“Vejo ele muito apegado a jogos e pouco sociável, e isso me incomoda demais”, diz ela (que preferiu omitir seu sobrenome) à BBC News Brasil. Diagnosticada com depressão anos antes, Ana viu a saúde mental dela e do garoto — assim como o relacionamento entre eles — piorarem desde que ele virou adolescente.
“Deixei de ter o papel da mãe que brinca. Deixei de ter um filho presente e carinhoso para ter um que se isola e se rebela. Ter os limites testados o tempo todo é algo que esgota muito”, diz ela, que é divorciada.
Ana afirma que não tem com quem compartilhar ou desabafar as angústias. O difícil, diz, é sentir que “você deixa de ser alguém que tenha alguma prioridade na vida dele (filho) para ficar escanteada, só servir para pagar contas”.
As mudanças sociais e hormonais típicas da adolescência, somadas ao isolamento da pandemia de covid-19 e aos efeitos das redes sociais, ampliaram as discussões sobre depressão e ansiedade nos adolescentes nos últimos anos.
Mas o debate costuma deixar de lado um ponto crucial: os problemas de saúde mental que afetam também pais e mães desses jovens. E mais: como a saúde mental das duas faixas etárias — pais e adolescentes — está interconectada.
Enquanto 18% dos adolescentes diziam sofrer de ansiedade, o mesmo valia para 20% das mães e 15% dos pais.
Já a depressão afetava 15% dos adolescentes e, ao mesmo tempo, 16% das mães e 10% dos pais.
Isso não quer dizer que eles experimentavam momentos de tristeza, que é um sentimento normal. Mas sim que tinham “pouco interesse ou prazer nas suas atividades” e se sentiam “mal, deprimidos ou desesperançosos” mais da metade do tempo — ou seja, em níveis considerados alarmantes pelos especialistas.
Outro dado preocupante: a pesquisa estima que um terço dos adolescentes americanos tenha ao menos um dos pais sofrendo de ansiedade ou depressão. E 40% desses jovens se diziam preocupados com o estado mental de seus pais.
“Um relato amplamente ignorado é o das pessoas centrais na vida dos adolescentes: seus pais e cuidadores. A saúde emocional de pais e de adolescentes é profundamente interconectada (...). Tão importante quanto soar o alarme sobre a saúde mental dos adolescentes é fazê-lo com a saúde mental dos pais”, diz o estudo, parte do projeto Making Caring Common (MCC, ou “popularizando o cuidado”, em tradução livre), da Faculdade de Educação de Harvard.
“Pais e adolescentes depressivos ou ansiosos podem inflamar e ferir uns aos outros de muitas formas. E nossos dados indicam que adolescentes deprimidos têm cinco vezes mais chance de ter um pai ou mãe deprimido”, agrega o relatório.
Mas qual é o ponto de partida desses problemas de saúde mental que retroalimentam duas gerações?
A depressão pode começar tanto nos pais como no adolescente, diz à BBC News Brasil Richard Weissbourd, diretor do MCC em Harvard e coautor da pesquisa.
“Ocorre em ambos os sentidos. Existe aquela expressão que diz ‘você é tão feliz quanto seu filho menos feliz’. E ter um adolescente deprimido ou muito ansioso costuma ser desgastante e contribuir para que você próprio tenha ansiedade e depressão”, ele explica.
“Mas se você é um adolescente que convive com um pai depressivo, retraído, crítico e raivoso — há pais que gerenciam bem sua depressão, mas há aqueles que não conseguem —, pode sentir que seus pais não te amam e estão decepcionados com você. E isso realmente afeta a autoestima, porque você acha que os humores dos pais são culpa sua.”
Além disso, em uma idade em que naturalmente adolescentes buscam seu próprio espaço e autonomia, desafiando limites, estes últimos costumam naturalmente se sentir mais desconectados — e preocupados — com os filhos, mas sem saber a quem recorrer. É um dos motivos por que pais dessa faixa etária estão entre os mais vulneráveis a problemas de saúde mental.
“Muitos pais sofrem porque estão solitários. Eles receberam muito pouca atenção (das políticas públicas). Realmente acho que eles estão sendo negligenciados”, diz Weissbourd, apontando que esses pais vinham deprimindo em mais intensidade mesmo antes da pandemia de covid-19.
Uso intenso de telas é um dos desafios de pais de adolescentes
No Brasil, levantamento recente do Panorama da Saúde Mental aponta que jovens entre 16 e 24 anos estão entre os mais afetados por problemas como baixa autoestima, desinteresse pelas atividades cotidianas e conflitos familiares.
Em 2021, pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) já havia identificado que 36% dos jovens apresentavam sinais de depressão ou ansiedade.
Embora fosse o retrato de um período particularmente difícil de estresse e isolamento durante a pandemia, corroborava a existência de um problema mais amplo: “a saúde mental da população em geral está muito frágil”, diz à BBC News Brasil Guilherme Polanczyk, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.
Os motivos por trás desse quadro são complexos, mas incluem, no Brasil, um contexto de mais sensação de solidão e violência na vida urbana e também uma vulnerabilidade socioeconômica em grande parte da população.
“No Instituto de Psiquiatria, a gente atende pessoas de baixa renda e vê situações em que a família não sabe se vai haver comida para a próxima refeição. Então nesse contexto de estresse enorme, de violência, é muito difícil falar ‘senta com seu filho e conversa com ele, isso vai melhorar sua saúde mental’”, aponta Polanczyk.
Mesmo em circunstâncias menos extremas, adolescentes costumam se distanciar dos pais nessa etapa — com o agravante, nos tempos atuais, da ligação dos jovens com eletrônicos e redes sociais.
É esse o principal desafio da professora Ana, cujo depoimento abriu esta reportagem.
“Sei que a adolescência é uma fase natural, todos passamos por nossas divergências com nossos pais e tentamos construir nossos espaços. Essa parte eu até entendo. Mas a parte da tecnologia tem sido muito difícil de controlar”, diz.
“A nossa geração não tinha essa necessidade de estar em constante contato com jogos, computadores. Se peço para o meu filho lavar a louça, ele logo diz que se cansa e que quer conversar com os amigos no celular. Qualquer atividade só interessa se tiver o estímulo constante de um vídeo de TikTok”, lamenta.
Depoimentos parecidos abundam entre as mais de 10 mil participantes do grupo de Facebook “Mães de Adolescentes e Pré-adolescentes”. Muitas se queixam da sensação de terem perdido a conexão com filhos que, até pouco anos antes, eram crianças próximas e carinhosas.
Rosângela Casseano, que é mãe e psicóloga, criou o grupo no Facebook quando o próprio filho virou pré-adolescente. Ela sentia que havia poucos espaços para mães desabafarem e pedirem conselhos sem se sentirem julgadas e culpabilizadas.
“É muito verdade que existe essa sensação de isolamento. As mães têm medo de contar o que estão passando com seus filhos adolescentes porque não querem ouvir críticas de que ‘não souberam educar’”, diz Casseano.
Mas a psicóloga acha que, no que diz respeito à relação entre mães e filhos, as tensões de hoje são parecidas às de gerações anteriores.
“Isso de os jovens buscarem seu espaço sempre aconteceu. A novidade de agora é o instrumento (a internet e as telas). Faz parte do desenvolvimento do adolescente esse afastamento. Só que os pais ficam muito assustados em ver os filhos no computador, sem interagir com a família.”
Apesar de tudo isso, os especialistas dizem que há muito o que pais e filhos podem fazer para se ajudar mutuamente a sair do ciclo nocivo à saúde mental.
E o primeiro passo, diz Weissbourd, é conversar — algo crucial, embora nem sempre fácil.
Mas talvez surpreenda os pais saber que os próprios adolescentes desejam serem ouvidos.
Dos jovens entrevistados na pesquisa de Harvard, 40% diziam ansiar por seus pais “perguntarem mais como eles estão — e realmente escutarem”.
Mesmo que os pais estejam passando por depressão e ansiedade, “ajuda muito quando eles conseguem compartilhar esses sentimentos com seus filhos e dizer 'não é culpa sua'", explica o pesquisador de Harvard.
“E os adolescentes de hoje estão muito mais conscientes, têm um vocabulário psicológico mais amplo do que em qualquer outra época da história e não sentem tanto o estigma que cercava a saúde mental”.
“Há estudos que mostram que fazer uma refeição por dia em família já melhora os sintomas depressivos. (Mas) uma refeição sem eletrônicos, em que os pais possam conversar com os filhos”, aponta Guilherme Polanczyk, da USP.
“Gosto de propor às mães que tenham um tempo com seus filhos. E isso não precisa ser uma viagem à Disney e nem mesmo um fim de semana inteiro. Pode ser uma caminhada, uma ida à padaria, algo que dê um tempo de qualidade, sendo ouvinte, com afeto”, diz Rosângela Casseano.
Outras questões cruciais são, segundo especialistas, cuidar do sono — cujo déficit é fortemente associado a problemas de saúde mental, especialmente entre adolescentes — e cultivar hábitos em família.
“Pais podem ajudar na ansiedade e depressão dos filhos ao engajá-los em atividades focadas neles mesmos ou em outras pessoas, atreladas a princípios e objetivos maiores que eles próprios — algo que é uma fonte rica de significado e propósito”, diz o relatório de Harvard.
E, é claro, a ajuda médica pode ser fundamental se sinais de depressão e ansiedade persistirem.
“Muitas vezes isso se resolve com aconselhamento (profissional), uma psicoterapia em grupo, e eventualmente com tratamento medicamentoso pontual. Quando (o transtorno) é identificado precocemente, é absolutamente tratável, e as pessoas vivem muito bem”, afirma Polanczyk.
Especialista recomendam medidas como cuidado com sono e cultivar hábitos em família
Há também outros dois fatores importantes a se prestar atenção, segundo os especialistas.
O primeiro é que existe um componente genético nos transtornos mentais. Esse é um dos mecanismos pelos quais ansiedade e depressão afetam pais e filhos ao mesmo tempo, aponta o psiquiatra da USP.
Esse fator genético, aliás, fez a fotógrafa paulista Andreia tremer quando o filho mais velho, então com 15 anos, disse a ela que “não estava com vontade de viver, não estava feliz e não queria decepcioná-la”.
O motivo que mais a preocupou é que, uma década antes, o pai do menino havia se afundado na depressão e se suicidado.
“Tive muito medo de perder o meu filho da mesma forma”, ela conta.
Ao mesmo tempo em que marcou todos profundamente, a experiência traumática fez a família ter consciência da importância em prestar atenção a sinais de depressão uns nos outros. O filho de Andreia passou por terapia — pela segunda vez, já que havia sido tratado depois da morte do pai — e hoje está bem.
Em segundo lugar, outro fator importante destacado por especialistas é manter uma relação respeitosa e não violenta com as crianças desde a infância. Tudo o que ela vive em seus primeiros anos de vida servirá como base para a saúde mental futura, tanto na adolescência quanto na vida adulta.
“As experiências na infância marcam — elas influenciam como o cérebro se desenvolve e como, do ponto de vista emocional, aquele indivíduo vai se desenvolver”, afirma Polanczyk. “Situações de abuso físico e emocional geram um estresse grande, que de fato leva a transtornos mentais”.
Por fim, Weissbourd, de Harvard, lembra que a adolescência é uma fase turbulenta, mas também enriquecedora.
“Aqui nos EUA, as pessoas tendem a ter medo, a serem tão negativas com adolescentes, como se fossem criaturas de outra tribo — mas acho que há tantas coisas interessantes neles”, afirma o pesquisador.
“Muito da raiva, da frustração e da tristeza que eles expressam é uma resposta apropriada a coisas difíceis na vida e no mundo. E os adolescentes estão hoje muito conscientes sobre o que acontece no mundo, e muitos são bastante comprometidos moralmente, incorporam causas com muita paixão. Eles nos questionam e nos criticam, o que é muito difícil, mas também é algo bom de muitas formas. Então também há muitas coisas empolgantes em se criar um adolescente.”