Especialistas vêm alertando: o aumento médio da temperatura e das mudanças nos regimes de chuva observadas nas últimas décadas está intimamente ligado ao aumento dos casos de doenças tropicais, em especial da dengue.
De acordo com um boletim de setembro do Ministério da Saúde do país, em 2022 os registros dessa doença tiveram um aumento de 189% em relação ao mesmo período de 2021. Em números absolutos, neste ano estima-se que mais de 1 milhão e 300 mil casos de dengue ocorreram no país.
“Estamos observando um clima cada vez mais quente e úmido, o que é um cenário muito propício para doenças como a dengue aumentarem sua área e grau de incidência”, afirma Christovam Barcellos, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz (Lis/Icict), que explica sobre a correlação entre crise climática e enfermidades tropicais.
Segundo Barcellos, essas doenças chamadas popularmente de tropicais por serem mais comuns nas regiões localizadas entre os trópicos, são muito dependentes de condições de clima para sua disseminação.
O alerta não se limita à dengue. Um estudo de revisão literária presente no livro “Saúde em Foco: Temas Contemporâneos” (Editora Científica, 2020), identificou uma relação entre as mudanças climáticas e o aumento de casos de doenças como a malária, a chikungunya, a doença de Chagas, a esquistossomose e a leishmaniose.
Por isso, além da alta de casos, “também é possível observar uma constância nos registros ao longo do ano, quando o esperado era uma maior transmissão durante as estações mais quentes e uma diminuição considerável durante as frias”, diz o pesquisador.
As doenças que se enquadram como tropicais são aquelas cuja incidência é mais favorecida pelo clima das zonas tropicais. O trabalho publicado em 2020 no “Saúde em Foco” explica que isso acontece porque o ciclo de vida dos vetores, reservatórios e hospedeiros dessas enfermidades estão diretamente ligados à dinâmica dos ecossistemas e variáveis de clima.
Isso quer dizer que os mosquitos transmissores da dengue, malária e chikungunya, por exemplo, necessitam de certas condições climáticas – no caso temperaturas quentes e umidade – para sobreviverem. O mesmo acontece com os vetores da doença de Chagas (protozoário Trypanosoma cruzi) e da esquistossomose (caramujo Schistosoma mansoni).
Entretanto, Barcellos enfatiza que essas moléstias, apesar do nome, não estão limitadas às zonas tropicais. “Elas também ocorrem em partes do mundo em que o clima é mais frio”, diz o pesquisador.
Na verdade, Barcellos esclarece que atualmente é mais correto usar o termo doenças negligenciadas, porque “a incidência delas também está muito ligada com as condições dos países em que elas ocorrem mais e, em sua maioria, são menos desenvolvidos”. Ele explica que são lugares onde há pesquisa insuficiente, poucos medicamentos e tratamentos: “Isso dificulta o controle”, reforça.
Como os transmissores das doenças prosperam no calor, o aumento da temperatura média da Terra pode favorecer sua proliferação. Segundo o “Saúde em Foco”, “ao observar a ecologia de vetores relacionados às doenças tropicais, percebe-se a forte relação com as altas temperaturas, a umidade relativa do ar elevada, o tempo de duração da estação de verão ou das condições de calor e umidade.”
Além disso, o artigo também relaciona as mudanças nos ciclos de chuva com o aumento dos casos. No caso das doenças transmitidas por mosquitos, como a dengue, chikungunya e a malária, o aumento da precipitação propicia maior pontos de água parada, que são habitats ideais para o desenvolvimento das larvas dos mosquitos.
O maior volume de água nas chuvas também está ligado com mais casos de esquistossomose. Segundo a publicação, a presença do caramujo transmissor está associada à coleções hídricas com pouca correnteza, como lagos, lagoas e córregos. Portanto, quando ocorrem inundações e transbordamentos de lagoas com a presença do caramujo, outras fontes de água acabam contaminadas.
Fora a influência da temperatura, no caso específico da dengue uma pesquisa publicada em janeiro de 2022 pela revista científica Plos One identificou que a perda da vegetação nativa por conta da ação humana também está relacionada com o aumento de infecções.
O estudo analisou especificamente o crescimento de casos de dengue entre 2001 e 2019 nas regiões de ocorrência de cerrado no Brasil. Nesse período, foram registrados pouco mais de 7 milhões e 950 mil casos de dengue nos estados que abrangem o bioma, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Minas Gerais. Enquanto isso, quase 282 mil quilômetros quadrados de área nativa foram desmatados nesta região.
Os resultados mostraram que o aumento das infecções pelo vírus da dengue têm uma relação direta entre o desmatamento, a diminuição dos predadores naturais do Aedes aegypti – mosquito transmissor da dengue - e o crescimento das áreas urbanas. “A dengue é uma doença muito urbana, então quanto menos mata e mais cidade, mais infecções”, comenta Barcellos.
Outro trabalho, realizado pelo Observatório de Clima e Saúde da Fiocruz, identificou um aumento massivo de casos em todo o Brasil nos últimos 20 anos, principalmente na região Centro-Oeste, onde a vegetação nativa predominante é o cerrado.
Segundo os dados do Observatório, a taxa de casos de dengue passou de 100 por 100 mil habitantes entre 2001 a 2007, para 10 mil por 100 mil habitantes entre 2014 e 2020.
A alta dos casos de dengue não é uma preocupação exclusiva do Brasil. A Organização Mundial de Saúde (OMS) relata que o número de casos de dengue notificados no mundo aumentou mais de oito vezes nas últimas duas décadas.
De 505.430 casos em 2000, os números subiram para mais de 5,2 milhões em 2019. As estimativas da organização, porém, prevêem que cerca de 390 milhões de infecções pelo vírus da dengue aconteçam anualmente.
Não só os casos estão aumentando, mas a geografia da doença também se espalha. De acordo com a OMS, antes de 1970, apenas nove países haviam registrado epidemias graves de dengue. A doença agora é endêmica em mais de 100 países da África, Américas, Mediterrâneo Oriental, Sudeste Asiático e Pacífico Ocidental. Além disso, a organização também alerta para ameaças de surtos de dengue na Europa.
Segundo Barcellos, as soluções para controlar essas doenças vão de ações individuais até mudanças globais. “Usar calças compridas, sapatos fechados e instalar telas e mosquiteiros nas casas vêm se mostrando eficazes para evitar infecções, principalmente para pessoas que vivem em regiões com alta ocorrência de insetos transmissores”, afirma ele.
Mas essas medidas não resolvem o cenário como um todo. “Também é preciso melhores condições de trabalho e equipamentos de proteção, em especial para ocupações ao ar livre, como a agricultura. E melhores habitações”, diz Barcellos.
Casas de alvenaria, por exemplo, evitam a proliferação do inseto vetor da doença de Chagas, que costuma habitar as fundações de casas de madeira e pau-a-pique.
Além disso, Barcellos alerta que o meio urbano precisa se adequar para a prevenção das doenças. “Não adianta a casa das pessoas ter conforto e ser um ambiente que as protege de infecções, se elas correm riscos na rua”, diz.
Entre as medidas que ajudariam na prevenção estão melhores infraestruturas de saneamento básico, transporte público, capacidade de drenagem para evitar enchentes e respostas mais rápidas e eficazes em caso de desastres naturais. “Quando acontece um desastre numa cidade ela tem que ser recuperada rapidamente. O fornecimento de água, coleta de esgoto e de lixo, tudo tem que voltar a funcionar rapidamente para não dar condições de proliferação de doenças”, ressalta Barcellos.
No âmbito global, a mitigação do aquecimento global a partir da diminuição das emissões de gases de efeito estufa e do desmatamento teria um efeito direto no controle das doenças tropicais.
“Se por um lado as mudanças climáticas aumentam os casos dessas enfermidades, diminuir o que causam essas mudanças é essencial para o controle. E isso deve ser uma vontade global, não só dos países mais afetados”, finaliza Barcellos.