A imprensa alemã destacou a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a Berlim como uma oportunidade de reativar as relações entre Brasil e Alemanha, mas lembrou que as divergências entre os dois países em temas como a guerra na Ucrânia e o conflito em Gaza podem ameaçar essa tentativa de reaproximação.
A ZDF, a maior emissora da Alemanha, chamou Lula de "parceiro problemático".
"O farol de esperança Lula, há muito venerado como uma estrela por muitos esquerdistas europeus, tornou-se há muito tempo num parceiro problemático", escreveu Frank Buchwald, correspondente sênior de política do canal de TV.
"A sua posição pouco clara na guerra da Ucrânia, a sua hesitação ambígua após o ataque terrorista do Hamas islâmico: tudo isto confunde os europeus — e especialmente os alemães", acrescentou.
Buchwald lembra que a relação entre Brasil e Alemanha e, mais amplamente, entre Mercosul e União Europeia, tem sido caracterizada pela "falta de entendimento".
"Se tivessem melhor memória, a surpresa deste lado do Atlântico talvez não fosse tão grande, porque a relação entre a União Europeia e o espaço econômico sul-americano Mercosul, entre o Brasil e a Alemanha, tem sido caracterizada há décadas pela incompreensão e desilusão no Sul, bem como por erros de julgamento, arrogância e paternalismo no Norte", assinalou.
"Durante muito tempo, os europeus foram considerados 'parceiros dos sonhos' por ministérios das Relações Exteriores da América do Sul: as jovens democracias do Chile, Argentina, Uruguai e especialmente do Brasil admiravam sociedades abertas, economias de mercado e estabilidade política", completou.
Mas, segundo Buchwald, o "clima mudou — também politicamente", escreveu, prevendo "conversas difíceis" entre Lula e o chanceler alemão, Olaf Scholz.
Na mesma toada, o jornal Frankfurter Allgemeiner Zeitung, um dos mais influentes do país, questiona se a Alemanha pode confiar em Lula.
"Quão confiável é Lula? O Lula que, após o ataque de Putin à Ucrânia, culpou ambos os lados pela eclosão da guerra; que, nos seus comentários sobre a guerra em Gaza, não descreve o Hamas como uma organização terrorista e fala de genocídio por parte do Exército israelense; e que está ao lado dos regimes autoritários no grupo Brics e também na América Latina", escreveu Tjerk Brühwiller, correspondente do jornal para a América Latina baseado em São Paulo.
Segundo Brühwiller, Lula "não quer e não irá se alinhar com o Ocidente em muitas questões".
"Não apenas por razões ideológicas. O Brasil se beneficia dançando em todos os casamentos, algo que Lula domina como nenhum outro. Ele quer ser o porta-voz do Sul Global e um construtor de pontes. Com a presidência do G20, ele tem mais uma plataforma à sua disposição desde o início deste mês", acrescenta.
Já a emissora Deutsche Welle falou sobre a possibilidade de reconstrução das relações entre Brasil e Alemanha após a visita de Scholz ao Brasil no início deste ano, considerada um "desastre diplomático" ou mesmo um "tapa na cara" pela imprensa alemã.
Na ocasião, Lula recusou qualquer ajuda militar à Ucrânia — um pedido de Scholz.
"Olaf Scholz é considerado alguém que tem um plano para tudo e todos. Se o chanceler tinha um plano há dez meses, quando visitou o recém-coroado presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, este correu terrivelmente errado", escreveu Oliver Pieper, repórter de política da emissora que cobre América do Sul.
"Lula, por quem a política alemã ansiava depois dos anos de chumbo do populista de direita Jair Bolsonaro, deixou bem claro que a Alemanha estava agora lidando com um parceiro pelo menos num nível de igualdade. Com uma agenda própria e autoconfiante como porta-voz do sul global e membro dos países Brics que também assumirá a presidência do G20 em 2024."
"A sua mensagem é clara: nenhuma sanção econômica contra a Rússia e nenhuma entrega de armas à Ucrânia, depois a exigência de uma nova composição do Conselho de Segurança das Nações Unidas com um assento para o Brasil e para o continente africano, bem como um acordo de comércio livre entre o Mercosul e a União Europeia, na qual a UE apoia inicialmente, teria que avançar uma vez", acrescentou.
Um tema destacado em todas as reportagens da imprensa alemã foi o acordo Mercosul-União Europeia, para o qual o Brasil espera renovar o apoio da Alemanha.
Lula esperava aproveitar a visita a Berlim para concluir ainda neste ano o tratado, que sofre forte oposição da França.
Há cada vez menos expectativas, no entanto, de que o acordo seja concluído, devido às críticas públicas do presidente da França, Emmanuel Macron, após ter se encontrado com Lula em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde ambos estiveram para a Conferência do Clima da ONU (COP28).
No sábado (2/12), Macron havia dito à imprensa que o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, que prevê a redução de tarifas em produtos dos dois blocos, é "antiquado" e "entra em contradição" com as políticas ambientais dos dois países — já que não estabelece garantias de redução de desmatamento em países como o Brasil.
Em entrevista a jornalistas na manhã de domingo (3/12) em Dubai, Lula disse que a verdadeira preocupação da França no acordo Mercosul-União Europeia não é o meio ambiente — mas sim garantir formas de proteger seus produtores de competição que vem do Brasil e da América do Sul.
"A única coisa que tem que ficar claro é que não digam mais que é por conta do Brasil. Assumam a responsabilidade de que os países ricos não querem fazer um acordo na perspectiva de fazer qualquer concessão", afirmou.
"Se não tiver acordo paciência, não foi por falta de vontade", acrescentou.
Lula desembarcou na Alemanha após passar por Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos, onde discursou na COP28, a conferência climática global da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em Berlim, ele se encontra com lideranças políticas e empresários. Deverão ser firmados cerca de 20 acordos nas mais diversas áreas, entre as quais meio ambiente, mudança do clima, desenvolvimento global, agricultura, bioeconomia, energia, saúde, ciência, tecnologia e inovação.
Após chegar à capital alemã, na tarde de domingo (3/12), Lula teve um jantar de trabalho oferecido por Scholz.
Nesta segunda-feira (4/12) pela manhã, o petista se reuniu com o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, e com a presidente do Conselho Federal (Bundesrat) e governadora do Estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, Manuela Schwesig.
À tarde, Lula e Scholz voltam a se encontrar e presidem a 2ª Reunião de Consultas Intergovernamentais de Alto Nível Brasil-Alemanha, com a participação de ministros de Estado brasileiros e ministros federais alemães.
As Consultas de Alto Nível são o mais elevado mecanismo de diálogo entre Brasil e Alemanha e a única reunião ocorreu em Brasília, em 19 e 20 de agosto de 2015. Na ocasião, a então chanceler Angela Merkel visitou o Brasil acompanhada de sete ministros e cinco vice-Ministros Federais.
No fim da tarde de segunda-feira, Lula e Scholz participam de um evento empresarial, que será realizado na Casa da Economia Alemã (sede da Federação da Indústria Alemã, BDI).
Na terça-feira (5/12) pela manhã, Lula deve participar de uma conferência na Fundação Friedrich Ebert, ligada ao Partido Social-Democrata (SPD), e se reunir com parlamentares da legenda. O SPD, partido do chanceler, tem proximidade histórica com o PT.
Este é, provavelmente, o último giro internacional do ano de Lula. O petista chegou a ser convidado para a posse do presidente argentino, Javier Milei, no dia 10 de dezembro, mas sinalizou que não comparecerá à cerimônia.
Quando voltar a Brasília, na terça-feira (5/12), Lula terá saído do Brasil 15 vezes, visitado 23 países e passado, no total, mais de 60 dias no exterior, desde que tomou posse para o terceiro mandato, em 1º de janeiro deste ano.