A clássica disputa comum em qualquer governo – entre gastar mais ou menos – voltou a esquentar em Brasília depois de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deixar claro que não pretende mais zerar o rombo primário das contas públicas em 2024, como havia prometido o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Após ter dito que não deseja cortar investimentos e que um déficit equivalente a 0,5% do PIB não seria "nada", o presidente explicitou os conflitos internos em reunião com ministros na sexta-feira (3/11).
"Para quem está na Fazenda, dinheiro bom é dinheiro que está no Tesouro, mas para quem está na Presidência dinheiro bom é dinheiro transformado em obras. É dinheiro transformada em estrada, em escola, em escola de primeiro, segundo, terceiro grau, saúde", defendeu Lula na ocasião.
"Se o dinheiro estiver circulando e gerando emprego, é tudo que um político quer e que um presidente deseja", acrescentou.
O motivo da discórdia é o chamado resultado primário – diferença entre tudo que o governo arrecada e gasta, com exceção das receitas e despesas financeiras, como os gastos com juros da dívida pública.
O governo brasileiro tem registrado déficits primários – ou seja, gastado mais do que arrecada – praticamente todos os anos desde 2014 (a única exceção foi 2022).
Isso provocou forte aumento na dívida pública, pois, quando o governo gasta mais do que arrecada, precisa emitir mais títulos de dívida para cobrir parte das despesas.
Já quando registra saldo positivo, paga juros da dívida, evitando seu descontrole. A dívida pública hoje está em 74% do PIB e com perspectiva de alta, segundo projeções do mercado monitoradas pelo Banco Central (BC).
A projeção do governo é fechar este ano com um déficit primário de R$ 141,4 bilhões (1,3% do PIB).
A promessa de Haddad era zerar o rombo em 2024 e registrar saldos positivos a partir de 2025, mas especialistas em contas públicas e agentes do mercado financeiro sempre manifestaram ceticismos com esses números, devido à dificuldade em elevar a arrecadação e à falta de medidas para cortar despesas.
Na visão de economistas favoráveis a um maior aperto fiscal, é fundamental que o governo volte a registrar resultados positivos nas contas primárias para reduzir o endividamento.
Segundo esses especialistas, um aumento constante da dívida tende a ter reflexos ruins na economia, como aumento dos juros, dólar mais caro e inflação mais alta (entenda melhor ao longo da reportagem).
Já os que defendem uma meta fiscal mais frouxa consideram que limitar os gastos sociais e investimentos em obras vai enfraquecer a geração de empregos e a oferta de serviços públicos aos mais vulneráveis.
Por enquanto, a revisão da meta está em debate no governo. A alteração terá que ser formalizada junto ao Congresso neste ano ou ao longo do próximo.
Apesar da fala de Lula ministro da Casa Civil, Rui Costa, negou na sexta-feira (3/11) que exista um conflito interno.
"Vi alguns artigos (na imprensa) tentando fazer um contraponto entre uma parte do governo que é gastador e outra que é poupador. Não há esse debate, não há essa dicotomia, porque não há nenhuma possibilidade de aumentar o gasto, porque o arcabouço não permite", acrescentou o chefe da Casa Civil.
A regra à qual Costa se refere é o novo arcabouço fiscal aprovado pelo Congresso para substituir o antigo Teto de Gastos, que limitava o crescimento das despesas públicas à inflação do ano anterior.
A nova regra permite que as despesas sempre cresçam acima da inflação, mas dentro de um intervalo que varia de 0,6% a 2,5%, a depender do ritmo de crescimento da receita.
O problema enfrentado agora pelo governo é que a receita não está crescendo no ritmo desejado. A se confirmar a expectativa de uma arrecadação mais fraca no próximo ano, a Fazenda teria que adotar medidas adicionais para cumprir a meta de zerar o déficit primário, seja segurando mais as despesas, seja aumentando impostos, por exemplo – ambas são medidas impopulares, ainda mais em um ano eleitoral (o Brasil elege prefeito e vereadores em 2024).
Haddad já anunciou uma série de medidas para aumentar a arrecadação, seja com novos tributos (como a taxação de apostas esportivas ou de fundos de investimento para super ricos), seja com a reversão de alguns benefícios fiscais (descontos em impostos). Mas boa parte dessas medidas depende da aprovação do Congresso, processo que tende a ser lento e, nem sempre, exitoso para a Fazenda.
"Se tiver de antecipar medidas para 2024, eu encaminho (ao Congresso mais propostas). O meu papel é buscar o equilíbrio fiscal, farei isso enquanto estiver no cargo, não é por pressão do mercado financeiro, acredito que Brasil, depois de dez anos, precisa voltar a olhar para contas públicas", afirmou, sem detalhar quais seriam as novas medidas.
Para especialista, Tebet (esq.) está sem apoio para medidas de redução de despesas
Economistas especialistas em contas públicas consideram correto o esforço do governo de aumentar as receitas por meio da revisão de benefícios tributários e aumento de impostos sobre os mais ricos. Por outro lado, criticam a falta de medidas para conter os gastos.
Para Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), o esforço do governo para aumentar as receitas por meio da revisão de benefícios tributários e aumento de impostos sobre os mais ricos está correto.
"Faz sentido a estratégia do Haddad. O problema é que ela tá 100% focada na arrecadação. Não tem nada para melhorar a eficiência e cortar gasto. Como não tem essa perna da despesa, o plano fiscal fica capenga", critica.
Segundo Barros, o Ministério do Planejamento, comandado por Simone Tebet, vem desenvolvendo medidas de avaliação do gasto público, para melhorar sua eficiência. Mas, na sua avaliação, ainda falta vontade política no governo para implementar essas ações.
Com visão semelhante, a economista Zeina Latif, sócia-diretora da Gibraltar Consulting, questiona o argumento de Lula de que seria preciso mais recursos para obras.
Ela lembra que o Brasil tem um longo histórico de gastar mal o dinheiro em infraestrutura, desperdiçando recursos em empreendimentos mal planejados e mal-executados.
Dados do Tribunal de Contas da União (TCU) reforçam seu ponto. Segundo relatório de outubro da instituição, 41% das obras tocadas no país em 2023 com previsão de recursos federais estão paradas. Isso representa 8.603 obras paralisadas, cujo orçamento soma R$ 32 bilhões.
"São obras paradas não por falta de dinheiro, é porque são projetos mal desenhados, com um monte de problema na execução, que não dão conta das exigências ambientais", ressalta Latif.
Embora o governo mire em mais crescimento econômico com o aumento de gastos, Gabriel de Barros avalia que a medida pode ter efeito inverso se não vier acompanhada de equilíbrio fiscal.
Segundo o economista, a continuidade do aumento da dívida pública tende a elevar os juros no país, o que encarece o financiamento para novos negócios.
Isso acontece da seguinte forma, explica ele: quando os investidores que emprestam dinheiro para o governo cobrir o rombo nas contas públicas veem a dívida aumentando, eles entendem que o risco daquela dívida não ser paga fica maior; com isso, passam a cobrar juros mais altos para comprar os títulos de dívida pública.
Isso, acrescenta Barros, pode fazer o empréstimo para o governo ficar mais atrativo do que investir em negócios mais arriscados, como abrir uma nova empresa ou expandir a produção, diminuindo o recurso disponível para atividades que geram emprego e renda.
Além disso, a taxa básica de juros (Selic) paga pelo governo é referência para os demais juros praticados no país – quando ela sobe, todo o crédito tende a ficar mais caro.
"Quanto mais alta a Selic, que é um reflexo do quão mais ou menos arrumada está as contas públicas, isso afeta negativamente o quanto de emprego e renda vai ser gerado na economia com investimento produtivo", resume.
"E a percepção de risco (sobre o endividamento público) também bate em câmbio, desvalorizando o real. Com o dólar mais alto, tudo que é importado fica mais caro, aumentando a inflação no país", acrescenta, destacando outro impacto negativo para a economia.
Registro de 2015 da construção da Transnordestina; obra atrasou e até hoje não foi concluída
A grande dificuldade do governo em elevar a arrecadação no patamar necessário para zerar o déficit já estava no radar do mercado financeiro.
Mesmo antes de Lula explicitar a intenção de rever a meta, o Boletim Focus (levantamento semanal realizado pelo Banco Central) mostrava que a projeção mediana de economistas para o resultado primário de 2024 estava em 0,75% do PIB. Depois das falas do presidente, a projeção subiu para 0,80% do PIB.
Apesar disso, a declaração do presidente foi mal recebida no mercado.
Segundo Barros, isso ocorreu porque a discussão sobre a revisão da meta era esperada apenas para o próximo ano. Na sua visão, a antecipação pode ter o efeito negativo de dar menos força para Haddad aprovar no Congresso medidas de aumento da arrecadação.
"Antecipar isso vai afetar a negociação no Congresso e pode fazer com que a revisão (da meta primária) seja por um déficit maior do que poderia ser se fosse feito no ano que vem", avalia.
"Se a arrecadação vier ruim, o governo pode ter que contingenciar (segurar gastos) de qualquer forma. Por isso, pode ser que esse novo déficit seja fixado em 1%", acredita Barros.
O economista Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda de São Paulo e atualmente sócio da gestora de investimentos Warren Rena, tem avaliação semelhante.
Ele ressalta que o Projeto de Lei Orçamentária para 2024 encaminhado pelo governo em agosto para o Congresso prevê R$ 212 bilhões de receitas discricionárias (aquelas que podem ser usadas livremente, não estando atrelada a alguma despesa obrigatória).
Desse total, R$ 168,5 bilhões são receitas condicionadas, ou seja, que ainda dependeriam de aprovação no Congresso, como o caso da proposta de taxar fundos exclusivos de super ricos e aplicações no exterior.
De lá pra cá, apenas uma dessas medidas já foi aprovada, a que devolve à Receita Federal vantagem nos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) sobre disputas tributárias com contribuintes – algo que pode render R$ 98 bilhões em 2024, segundo a Fazenda.
Mas mesmo essa previsão de R$ 98 bilhões em arrecadação com essa mudança é considerada muito otimista por especialistas, afirma Salto.
Sua projeção, por exemplo, é que o governo vai arrecadar em 2024 R$ 172,3 bilhões em receitas discricionárias (R$ 40 bilhões a menos do que consta na PLOA). Se esse quadro se confirmar e de fato nada em despesa for contingenciado, haverá um resultado deficitário em 0,74% do PIB em 2024.
"Logo, se a meta mudasse para um déficit de 0,5% do PIB, não mudaríamos a projeção e o governo continuaria com um cenário apertado, mesmo sob essa meta mais alargada. Acho que os ministros que aconselharam o presidente a mudar a meta para liberar espaço para gastos ou para evitar o contingenciamento, o que dá na mesma, não perceberam esse detalhe das contas", pondera.