A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado ampliou ontem o esgarçamento das relações entre o Congresso e o Poder Judiciário. Em uma votação que durou 40 segundos, o colegiado aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita as decisões monocráticas (tomadas por um único ministro) do Supremo Tribunal Federal (STF) e o prazo para os pedidos de vista.
A aprovação provocou reação do presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, que defendeu o papel da Corte na defesa da ordem democrática. O texto segue, agora, para o plenário da Casa.
Em uma fala pouco antes do início da sessão plenária de ontem no Supremo, Barroso lembrou que, recentemente, a própria Corte fez alterações em seu regimento que tocam em pontos a que a emenda se refere. Ele afirmou que o Congresso é um lugar de debates, mas observou que “nós (os membros do Judiciário) participamos desse debate também (mais informações nesta página)”.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), reforçou o cenário de embate e disse que os Poderes devem se manter nos “limites constitucionais” e que tem “absoluta certeza” de que “o Parlamento os obedece, os cultiva e os respeita”. A declaração foi dada na abertura do evento para celebrar os 35 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988.
A PEC n.º 8/2021 foi proposta por um grupo de senadores encabeçado por Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) e esteve sob relatoria de Esperidião Amin (PP-SC). O texto foi para uma vista coletiva no fim de agosto e voltou para a pauta da CCJ ontem. Ele resgata outra PEC, também proposta por Oriovisto e relatada por Amin, que foi rejeitada em setembro de 2019.
A votação ocorreu de forma simbólica, ou seja, sem registro individual de votos. Em menos de um minuto, o presidente da comissão, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), declarou a aprovação do texto.
O presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), é quem decide quando a proposta vai ser incluída em pauta para votação no plenário. Não há um prazo regimental para isso.
Como a PEC começou a tramitar no Senado, se for aprovada, segue para a Câmara. Lá, o texto também pode passar por comissões antes de ir ao plenário. Se os deputados mantiverem a redação dos senadores, a PEC será promulgada. Já se o texto for modificado, precisa passar pelo Senado de novo.
A proposta de emenda constitucional diz que decisões monocráticas do STF não podem suspender “a eficácia de lei ou ato normativo” de abrangência nacional nem atos do presidente da República e dos presidentes do Senado, da Câmara e do Congresso. Na prática, quando uma ação declaratória de inconstitucionalidade for para o Supremo, o ministro-relator não pode suspender sozinho a eficácia da lei questionada, como hoje é previsto na lei.
Foi o que ocorreu, por exemplo, no caso do piso da enfermagem. Barroso atendeu a um pedido da Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde) e suspendeu liminarmente a lei do piso salarial da categoria. Se a PEC for aprovada, uma decisão como essa poderia ser tomada só com o voto de pelo menos seis ministros, maioria da Corte.
Na mesma linha de limitar os atos de ministros do STF, começou a tramitar na Câmara, em 27 de setembro, a PEC 50/2023, que permite ao Congresso derrubar decisões do Supremo que, segundo os autores do projeto, “extrapolem os limites constitucionais”.
A decisão da CCJ da manhã de ontem é mais um sinal explícito do descontentamento do Senado com o Supremo. Pacheco nega animosidade, mas destacou que temas que “dividem a sociedade”, como drogas e aborto, devem ser “decantados” pelo Legislativo, e não decididos pelo STF.
O marco temporal da demarcação das terras indígenas é um dos episódios que representam a rusga entre os dois Poderes. Aprovado por ampla maioria na Câmara em maio, o projeto foi para o Senado, sob a promessa de Pacheco de que o texto passaria por comissões e seria analisado sem regime de urgência. No entanto, antes de o trâmite acabar, o Supremo colocou o caso em pauta e julgou inconstitucional o marco temporal para demarcação das terras indígenas no País.
Parlamentares afirmam que, com decisões como essa, os integrantes da Suprema Corte brasileira estão atuando em temas que deveriam ser discutidos no Congresso.
O texto do projeto sobre o marco temporal aprovado no Congresso irá à Presidência da República para sanção ou veto. Interlocutores têm dito que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está inclinado a vetá-lo - o que arrastaria o Executivo para essa crise, até agora protagonizada por Legislativo e Judiciário. Já existem articulações no Congresso para derrubar um eventual veto presidencial.
Na segunda-feira, Pacheco disse que, depois que Lula indicar o substituto da ministra Rosa Weber (que deixou o STF na semana passada por atingir a idade-limite de 75 anos), a discussão sobre criar um mandato para ministros do Supremo deve ser pautada no Senado.
Juristas ouvidos pelo Estadão divergem sobre a constitucionalidade da PEC aprovada ontem na CCJ do Senado. Miguel Reale Junior, advogado e ex-ministro da Justiça, considera que a norma “já nasce vitimada por inconstitucionalidade”. Para ele, conflitos entre Legislativo e Judiciário são recorrentes na história brasileira.
Wálter Maierovitch, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, afirmou que a PEC “busca adentrar o regimento interno do STF”. “É uma questão que diz respeito ao próprio governo do Poder Judiciário.” Nesse caso, segundo ele, a proposta ataca uma cláusula pétrea, que é a independência e a separação dos Poderes.
Ives Gandra Martins, advogado e professor, discorda dos colegas e diz que não há problema com a PEC. “Há um poder constituinte originário, que criou o STF em 1988, e há um poder constituinte derivado, dado ao Congresso Nacional.”
‘Não está na hora’ de mexer no STF, reage Barroso
O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo tribunal Federal (STF), reagiu ontem às propostas para alterar o regime de indicação dos ministros da Corte e regras internas de funcionamento do tribunal. “Acho que o Supremo, que talvez seja umas das instituições que melhor serviu ao Brasil na preservação da democracia, não está em hora de ser mexido”, afirmou Barroso.
O STF aprovou, em dezembro, regra que alterou o regimento interno e determinou que as decisões individuais precisam ser submetidas ao crivo do plenário. Os pedidos de vista - quando os ministros requisitam mais tempo para analisar o processo e suspendem o julgamento - foram limitados a 90 dias. Desde então, se o ministro não observa o prazo, a ação é liberada automaticamente para ser incluída novamente na pauta.
Na prática, ao promover as mudanças por iniciativa própria, o tribunal se adiantou a tentativas de interferência externa. O movimento, contudo, não foi suficiente. “O lugar em que se faz o debate público das questões nacionais é o Congresso e, portanto, vejo com naturalidade que o debate esteja sendo feito, mas nós participamos desse debate também”, disse Barroso.