Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, e Alberto Fernández, da Argentina, voltaram a se encontrar em Brasília na segunda-feira (26/6). Foi o quinto encontro entre eles desde que o brasileiro tomou posse, em janeiro.
O argentino está no fim de seu mandato e em 10 de dezembro passará a faixa presidencial ao sucessor da Casa Rosada. Ainda assim, está no topo da lista de líderes mundiais com quem Lula mais se encontrou neste ano.
O que está na agenda dos dois presidentes? E o que a Argentina quer do Brasil?
Os dois governos divulgaram um longo documento conjunto do que foi chamado "relançamento da relação estratégica bilateral", com noventa ações, que incluem obras de infraestrutura, defesa e energia, entre outros itens.
No documento, afirmam que vão “continuar analisando alternativas para estruturar uma linha de crédito de produtos brasileiros exportados para a Argentina”. E este é o ponto que mais tem interessado a Argentina em sua urgência por conseguir divisas para manter suas compras externas.
Lula e Fernández costumam se referir um ao outro como “amigo”, pelo menos desde que o argentino se solidarizou com o brasileiro e o visitou na prisão em Curitiba, acompanhado pelo ex-chanceler e hoje assessor especial da Presidência, Celso Amorim.
Agora, com a economia argentina em uma situação complicada, com limitações de divisas para pagar o que compra do exterior, a expectativa original de Fernández é conseguir respaldo do governo brasileiro para que o país possa continuar pagando as importações que realiza de produtos do Brasil, como confirmaram fontes diplomáticas argentinas. (Entenda mais abaixo)
“Essa negociação não é de agora. Vem desde o início do ano”, contou o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli.
Em Brasília e em Buenos Aires, nos bastidores, os comentários eram também de que, após o “silêncio, distanciamento e até agressões (por parte do Brasil)” durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, a relação “está sendo retomada”. “Com tudo”, disse uma fonte diplomática argentina.
Em 2022, o volume de menções sobre a Argentina no debate político no Twitter se tornou maior que as mensagens sobre a Venezuela, um país cuja crise foi amplamente utilizada por políticos brasileiros nos últimos anos.
Na época, o então presidente Bolsonaro e pessoas próximas, como o filho Eduardo Bolsonaro, dedicaram espaço em várias redes sociais para falar do país vizinho.
"Essa atual crise passa, a que não passa é a do Socialismo, que o PT ajudou a implementar na Venezuela, está em andamento na Argentina", escreveu Bolsonaro naquele ano.
Nesta segunda-feira, Lula disse: “Estamos trabalhando numa linha de financiamento abrangente (para os argentinos). Não faz sentido que o Brasil perca espaço no mercado argentino porque outros países oferecem crédito e nós não”.
No mês passado, logo após seu encontro anterior com Fernández, o presidente brasileiro defendeu que o objetivo não é apenas beneficiar a Argentina, mas ajudar empresários brasileiros que exportam para o mercado vizinho e financiar as exportações nacionais.
O chamado programa de financiamentos à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros consiste no aporte a empresas brasileiras para executarem serviços no exterior. Os empréstimos são feitos em reais e no Brasil, para as companhias nacionais.
Segundo um negociador brasileiro que participou do encontro em Brasília nesta segunda, o BNDES financiará por meio desse modelo o gasoduto Nestor Kirchner, que irá da região da Patagônia, no extremo sul da Argentina, até o Brasil. A ideia é reduzir a dependência do gás boliviano, que, de acordo com dados dos dois países, estaria em queda.
A primeira fase do projeto já está concluída e o governo do país vizinho busca recursos para continuar a obra, com 500 quilômetros, ligando os campos de óleo e gás da região de Vaca Muerta até San Jerónimo, na província de Santa Fé. Há planos para que, em uma fase futura, o gasoduto se conecte com o Rio Grande do Sul, mas eles nunca saíram do papel.
Segundo Lula, “há perspectivas positivas” para que o BNDES comece a subsidiar produtos de origem brasileira para a construção do gasoduto.
O projeto, porém, tem despertado muitos questionamentos ambientais. Para a extração de petróleo e gás na região de Vaca Muerta é necessária uma técnica conhecida como fracking, que consiste em perfurar as rochas e introduzir água, areia e produtos químicos para aumentar a permeabilidade da pedra e fazer o produto escoar mais facilmente.
A técnica, no entanto, pode gerar contaminação na água, na terra e no ar durante o processo de produção, armazenamento e transporte pela quantidade de água utilizada. Justamente por isso está proibida em muitos países.
Ao mesmo tempo, a possível entrada do BNDES em novos empreendimentos internacionais é considerada um ponto sensível para especialistas.
Isso acontece, em parte, por conta das dívidas e calotes acumulados por alguns dos países envolvidos. Também há críticos que falam em falta de transparência nos financiamentos. E há ainda quem defenda que os investimentos podem ser destinados a projetos mais vantajosos para o Brasil.
Em maio, o presidente argentino desembarcou em Brasília com seus ministros da Economia, Sergio Massa, e das Relações Exteriores, Santiago Cafiero, além do embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli.
Após o encontro, Lula lamentou não poder ajudar mais o argentino com empréstimos diretos.
Em uma declaração que gerou polêmica em setores da imprensa argentina, o presidente brasileiro disse que Alberto Fernández "chegou aqui muito apreensivo, mas vai voltar mais tranquilo".
"É verdade, sem dinheiro, mas com muita disposição política", disse.
Lula reconheceu, porém, que a situação do país vizinho tinha se agravado a partir dos efeitos econômicos da seca histórica, com três anos seguidos de estiagem que acabaram drenando também a geração de divisas geradas pelas exportações do agronegócio argentino.
Por isso, levantou a possibilidade da criação de uma espécie de fundo garantidor pelo banco do Brics, o NDB (Novo Banco de Desenvolvimento), para assegurar os financiamentos brasileiros.
O Brics é formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e, atualmente, a ex-presidente Dilma Rousseff preside o NBD.
Esse passo, porém, ainda não saiu do papel.
Dias após receber Fernández em Brasília em maio, Lula admitiu que “não foi possível (conseguir que o banco dos Brics desse essa garantia)”.
No entanto, no item 17 do documento conjunto divulgado nesta segunda-feira, afirma-se que os dois países continuarão “estudando alternativas para a estruturação de uma linha de crédito para as exportações de produtos brasileiros para a Argentina” e que os responsáveis seriam o BNDES e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), entre outros.
Argentina registrou inflação acima de 100% ao ano
Segundo uma fonte do governo brasileiro que tem acompanhado de perto a relação bilateral, o mais rápido apoio financeiro que o Brasil pode dar à Argentina no momento se manifesta por meio de uma “maior pressão” para que o Fundo Monetário Internacional (FMI) “alivie” as exigências feitas ao país.
Na semana passada, Lula e outros cinco presidentes assinaram uma carta enviada a Joe Biden, dos Estados Unidos, respaldando a renegociação do acordo da Argentina com o organismo internacional, segundo a imprensa local.
Em maio, após um encontro a portas fechadas com sua contraparte argentina, Lula disse que tinha se comprometido com “o amigo a fazer todo e qualquer sacrifício para que a gente possa ajudar a Argentina neste momento difícil (...) e conversar com o FMI para tirar a faca do pescoço da Argentina”.
A Argentina assinou um acordo de US$ 44 bilhões com o Fundo durante o governo do ex-presidente e opositor de Fernández, Mauricio Macri.
Atualmente, tenta renegociar o acordo para destravar a liberação de recursos para o país.
Economistas argentinos ouvidos pela BBC News Brasil explicaram que a Argentina não está buscando um “empréstimo” do governo brasileiro, mas evitar ter que suspender as importações do Brasil. Disseram que “não é um empréstimo de país para país".
A ideia inicial era de que o financiamento para as empresas brasileiras na Argentina girasse em torno de US$ 1 ou 2 bilhões. No entanto, a expectativa é que, se o acordo sair do papel, será em um valor muito menor.
"Eu espero que saia (o acordo com o Brasil) porque vai ajudar o comércio e também a indústria brasileira”, disse o economista brasileiro Gustavo Perego, da consultoria Abeceb, de Buenos Aires.
No início de junho, a Argentina assinou acordo financeiro com a China, com objetivo de reforçar suas reservas do Banco Central da República Argentina (BCRA).
Mas, no entendimento de economistas locais, o pacto poderia abrir a porta para a maior presença de produtos chineses na Argentina.
“Nossa preocupação é que acabe ocorrendo presença ainda maior da China e menor do Brasil”, avaliou Perego.
Recentemente, a imprensa especializada que acompanhou a viagem do ministro da Economia, Sergio Massa, e do presidente do BCRA, Miguel Pesce, a Pequim, voltou a usar o termo ‘Argenchina’ – junção de Argentina e China – para sinalizar a maior união entre os dois países.