Uma disputa de poder entre o Senado Federal e a Câmara dos Deputados está atrasando o andamento de pautas importantes do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no Congresso Nacional. E, se o impasse não se resolver, há o risco de medidas importantes, como a reestruturação do governo e a volta do Bolsa Família, serem anuladas.
Sem chegar a um acordo, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) subiram o tom das críticas mútuas na quinta-feira.
O problema está no andamento das medidas provisórias (MPs) editadas pelo Poder Executivo. Uma MP é a forma como o governo consegue adotar imediatamente ações que teriam que ser aprovadas pelo Congresso.
Só que as medidas provisórias têm duração máxima de 120 dias. Se a proposta não recebe o aval da Câmara e do Senado nesse prazo, ela simplesmente caduca (perde a validade).
No momento, as MPs estão travadas por um impasse sobre como deve ser feita sua tramitação no Congresso.
Antes da pandemia, essas propostas passavam por uma análise inicial conjunta em uma comissão mista, formada por 12 integrantes de cada casa.
Dessa forma, havia uma alternância entre senadores e deputados para relatar as MPs – o relator é o parlamentar que concentra as negociações e redige a versão final que vai à votação, já que as medidas provisórias podem sofrer modificações no Congresso.
Após essa comissão, a proposta era apreciada no plenário da Câmara e, em seguida, no do Senado.
Esse rito, que está previsto na Constituição, foi alterado durante a pandemia de covid-19, quando o funcionamento das comissões ficou suspenso. Com isso, as medidas provisórias passaram a ser analisadas diretamente pela Câmara, o que deu poder extra a Arthur Lira de definir sempre um deputado para relatar a matéria.
O Congresso já voltou ao funcionamento de antes da pandemia, retomando outras comissões que estavam paradas. No entanto, a Câmara resiste a retomar o rito anterior das medidas provisórias.
Lira argumenta que a Câmara dos Deputados estaria sub-representada nas comissões mistas, já que a casa indica o mesmo número de integrantes que o Senado (12), apesar de ser numericamente maior (são 513 deputados e 81 senadores).
Ele defende a aprovação de uma alteração da Constituição para mexer nesse número.
Pacheco, por sua vez, sugeriu uma emenda constitucional que acabaria com as comissões mistas, mas estabeleceria que o início da tramitação das MPs seria alternado entre Câmara e Senado. Assim, cada casa revezaria a indicação do relator.
Isso também reduziria outra queixa do Senado, de que a Câmara demora muito para analisar as medidas provisórias, deixando pouco tempo para a atuação dos senadores. Lideranças da Câmara, porém, resistem a essa proposta, que na prática tiraria poder dos deputados.
Lira também argumenta que, exceto problemas pontuais, “mais de 90%” das MPs foram encaminhadas dentro do prazo para o Senado e que não faria sentido mudar o rito atual.
“Portanto, era de se esperar o bom senso por parte do Senado de que o que estava funcionando bem permanecesse”, defendeu.
Diante da falta de acordo, Pacheco, que é também presidente do Congresso, decidiu na quinta-feira (23/03) que vai retomar as comissões mistas à revelia do desejo de Lira.
A ideia é que esse rito seja aplicado às medidas provisórias do governo Lula, enquanto as remanescentes do governo Bolsonaro continuem tramitando do jeito atual. Hoje, há treze de cada presidente aguardando apreciação.
A decisão foi adotada com apoio dos líderes partidários no Senado a partir de uma questão de ordem do senador Renan Calheiros (MDB-AL), que é rival político de Lira em Alagoas.
“Encerrada a pandemia, felizmente, não havendo mais o estado de emergência, revogado inclusive pelo Poder Executivo, havia a necessidade, obviamente, da retomada da ordem constitucional e do cumprimento da Constituição no rito das medidas provisórias, isso com uma obviedade muito grande”, argumentou Pacheco, ao anunciar sua decisão.
O presidente da Câmara reagiu de forma dura, chamando a decisão de “truculenta”. Ele anunciou que a Casa votará na próxima semana as 13 MPs remanescentes do governo Bolsonaro. E indicou que não aceitará a instalação das comissões mistas para as medidas provisórias de Lula.
“Essa questão de ordem cedida, pelo que eu entendi na reunião de líderes (no Senado), não vai andar 1 milímetro na Câmara dos Deputados e o prejuízo vai ser para o governo atual”, afirmou em pronunciamento a jornalistas.
Segundo Lira, as lideranças na Câmara estariam ao seu lado, inclusive os líderes do governo.
“E eu quero aqui deixar claro para quem tiver dúvidas, eu recebi solicitação expressa do governo federal de manutenção do rito atual. Se o governo preferir as comissões mistas, ótimo, paciência. Vai arcar com o ônus de negociar as comissões mistas com 24, com 36, com 48 membros, e arriscar que as medidas provisórias caiam no plenário da Câmara, no plenário do Senado, as Casas são equivalentes”, ressaltou.
Já o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), apoiou a decisão de Pacheco.
“Até porque qualquer MP transformada em projeto de lei sem obediência ao rito constitucional pode ser questionada quanto à sua validade. Então o presidente [do Senado], que é o estilo dele, quis ouvir os líderes. Mesmo estando frustrados por não ter tido o acordo [com o presidente da Câmara], fomos unânimes no acolhimento da questão de ordem feita. E que se proclamem a instalação das comissões”, disse Wagner, segundo a Agência Senado.
Existem treze MPs de Lula aguardando apreciação, como a medida que retornou o imposto sobre gasolina e etanol e criou um novo tributo sobre exportação de petróleo cru.
Há também MPs que estabeleceram as novas regras de programas sociais, como Bolsa Família e Mais Médicos. Já outra MP importante reorganizou a administração federal, criando novas pastas, como o Ministério dos Povos Indígenas.
Outras treze medidas provisórias do governo de Jair Bolsonaro também aguardam apreciação no Congresso, como a MP que tratou da contratação de profissionais para atuar no Censo 2022.
Para a cientista política Beatriz Rey, pesquisadora visitante da Universidade Johns Hopkins, em Washington, a escalada na tensão entre Câmara e Senado evidencia as dificuldades do governo Lula na relação com o Congresso, já que o Palácio do Planalto não está conseguindo mediar um acordo entre Lira e Pacheco.
Como até o momento não houve uma votação relevante no Congresso, Lula não pôde testar qual o tamanho real de sua base, lembra ela.
Além da votação das medidas provisórias, o governo precisa aprovar até agosto um novo arcabouço fiscal (regras para os gastos públicos) e deseja passar também uma complexa reforma tributária.
“Eu enxergo uma desorganização nessa articulação com o Congresso. É do interesse do governo resolver esse impasse, não só para poder destravar a pauta do governo, mas para testar a base, porque a gente tem votações importantes pela frente. Então, eu acho que o governo está batendo cabeça nesse primeiro momento”, nota Rey, que é especialista no funcionamento do Poder Legislativo no Brasil e nos Estados Unidos.
Já o analista político Antônio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), acredita que o impasse das medidas provisórias está sendo útil ao governo, justamente para dar tempo de construir uma base parlamentar antes das votações mais importantes.
Na sua visão, Lira e Pacheco terão que chegar a uma solução, sob o risco de arcar com a responsabilidade de uma paralisia do governo.
"Ou o Congresso ficaria com a pecha de ser omisso por razões de disputa interna de cumprir sua função que é apreciar as políticas públicas propostas pelo governo", disse.
No momento, o governo segue negociando com os partidos do chamado Centrão cargos no segundo e terceiro escalões da administração pública em troca de apoio no Congresso.
Além disso, Segundo reportagem do jornal O Globo, o governo Lula estaria “reciclando” o chamado Orçamento Secreto, adotado no governo Jair Bolsonaro e proibido no fim de 2022 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
No antigo Orçamento Secreto, bilhões do orçamento federal eram destinados para obras e outros gastos públicos nos redutos eleitorais de deputados e senadores por meio de emendas parlamentares pouco transparentes, em troca de apoio no Congresso.
Após a decisão do STF, parte dessa verba foi mantida sob controle do Congresso, com novas regras, e outra parte voltou para gestão dos ministérios.
Segundo o jornal o Globo, essas verbas estariam sendo liberadas pelo governo em negociação com parlamentares, sem transparência.
Um exemplo seria a liberação neste ano de R$ 124 milhões do Ministério da Integração para a superintendência da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) em Alagoas, órgão comandado desde 2021 por João José Pereira Filho, primo de Lira. O recurso servirá para financiar obras em dez cidades do Estado.
Segundo a reportagem do Globo, o Planalto não se manifestou ao ser questionado pelo jornal. Lira, por sua vez, disse que “a relação das prefeituras e Estados com a União se dá entre membros do Poder Executivo, por meio de projetos devidamente aprovados e sujeitos à fiscalização pelos órgãos competentes”.