Este é o cenário da série de sucesso The Last of Us, do HBO Max, lançada neste mês. A estreia da série no dia 15 de janeiro alcançou 4,7 milhões de espectadores nos Estados Unidos – a segunda maior estreia da HBO, atrás apenas de “House of the Dragon”, e a primeira posição na América Latina. O programa também foi um sucesso nas redes sociais, atingindo os assuntos mais comentados no Twitter.
The Last of Us tem como ponto de partida um cenário conhecido de todos nós: o surgimento de uma doença desconhecida que, rapidamente, se espalha pelo mundo. Apesar das semelhanças com a Covid-19, a série mistura elementos de realidade e ficção ao narrar o mundo impactado por uma pandemia causada por um fungo da espécie Cordyceps.
Esse tipo de fungo existe, de fato, e é conhecido pela capacidade de parasitar insetos, como formigas, e conseguir controlar o comportamento do hospedeiro, que se torna um tipo de “zumbi”. No entanto, ele não é capaz de infectar humanos – como acontece na série, devido à alta temperatura corporal. A narrativa ficcional cria um contexto em que essa espécie consegue evoluir ao longo do tempo devido às mudanças climáticas e ao aquecimento global, adquirindo uma capacidade de parasitar humanos e de controlá-los.
Para desvendar um pouco sobre o universo dos fungos, a CNN conversou com o cientista Manoel Marques Evangelista Oliveira, do Laboratório de Taxonomia, Bioquímica e Bioprospecção de Fungos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). O especialista aponta que embora o contexto de The Last of Us seja ficcional, a evolução dos fungos representa uma preocupação científica real.
“Nos últimos anos, temos observado uma mudança no perfil dos fungos devido também às adaptações climáticas. O fungo tenta se adaptar ao ambiente em que ele se encontra. Às vezes, a mudança de temperatura faz com que ele se adapte ao ambiente”, afirma. “Há um crescente de relatos de fungos que tinham perfil ambiental, ou seja, crescer a uma temperatura que não era a do corpo humano acima de 37°C, e que começam a se desenvolver como fungos patogênicos (causadores de doenças)”, completa.
Como exemplo, o pesquisador cita a identificação do primeiro caso no Brasil de meningoencefalite – um tipo de meningite – causada pelo fungo Penicillium chrysogenum. O fungo raramente é apontado como causa de doenças em humanos. No entanto, foi capaz de provocar uma infecção grave no cérebro e meninges de uma paciente no município do Rio de Janeiro, que levou à morte.
Um surto de doença fúngica ocorre quando duas ou mais pessoas adoecem devido ao contato com a mesma fonte, às vezes no mesmo horário e local. Isso pode acontecer ao ar livre ou em um ambiente de cuidados de saúde, como um hospital, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos.
A detecção precoce de surtos fúngicos é importante para que as pessoas afetadas possam receber o tratamento correto e para que as autoridades de saúde possam impedir que outras pessoas fiquem doentes. “O grande foco na pesquisa científica de fungos no Brasil hoje é termos a resposta para os casos suspeitos de infecções fúngicas para ajudar os pacientes”, afirma Manoel.
O médico infectologista Vítor Falcão de Oliveira, do Hospital das Clínicas de São Paulo, afirma que os fungos representam um risco maior às pessoas com comprometimento da imunidade.
“As infecções fúngicas ocorrem na sua grande maioria em pacientes com a imunidade comprometida, como pacientes diabéticos descompensados, pacientes graves em unidades terapia intensiva, em uso de imunossupressores, transplantados ou com câncer. Isso por si só já justificaria uma alta mortalidade, já que esses pacientes são intrinsecamente mais graves”, explica Vítor.
Abaixo, listamos alguns dos mais perigosos fungos do mundo – que não inclui o famigerado Cordyceps, de The Last of Us.
Causadores de uma doença chamada mucormicose, os fungos da ordem dos Mucorales vivem em todo o ambiente, principalmente no solo e em matéria orgânica em decomposição, frutas e alimentos ricos em amido.
A infecção pode ser causada por diversas espécies de fungos desta ordem, principalmente os fungos do gênero Rhizopus, Mucor, Lichtheimia, Cunninghamella, Rhizomucor, Apophysomyces e Saksenaea, a partir da inalação de esporos fúngicos. As espécies podem variar quanto à virulência, forma de aquisição e sensibilidade aos antifúngicos.
A mucormicose é uma doença que acomete, principalmente, pacientes diabéticos, particularmente os descompensados, que apresentam hiperglicemia e acidose. Os pacientes imunodeprimidos também podem desenvolver a infecção, especialmente aqueles com baixa contagem de neutrófilos no sangue, além dos pacientes em uso de medicações imunossupressoras como os transplantados ou com doenças autoimunes.
Outros grupos de risco para o desenvolvimento da doença envolvem vítimas de trauma, queimaduras e desastres naturais por implantação do fungo na lesão. É uma doença de diagnóstico difícil, frequentemente tardio, com elevada morbidade e mortalidade, 40 a 80%.
“A mucormicose apresenta alta letalidade. Essa infecção fúngica começa com um quadro de uma sinusite, e pode invadir olho e cérebro. Se não for diagnosticada precocemente, a mortalidade pode chegar a até 90%. Essa doença ficou muito em alta na pandemia de Covid-19”, afirma Vítor.
A mucormicose se apresenta principalmente nas formas rino-órbito-cerebral (nariz, olhos e cabeça), pulmonar, gastrointestinal e cutânea. É uma doença extremamente grave e de rápida evolução para óbito, em razão do acelerado crescimento do fungo e destruição de tecido.
Os principais sinais e sintomas são lesões necróticas invasivas no nariz e no palato acompanhadas de dor e febre. Infecção nos olhos, deslocamento do globo ocular e secreção nasal com pus também podem ser indicativos da doença. Podem ocorrer sintomas pulmonares graves que incluem tosse com secreção, febre alta, falta de ar ou dificuldade para respirar, além de infecção disseminada em pessoas que tenham comprometimento grave do sistema imunológico.
O diagnóstico é comumente realizado em laboratórios com estrutura adequada para realizar exame micológico direto e cultura de fungos. O Laboratório de Referência Nacional (LRN) de Micoses Sistêmicas do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz) recomenda o envio das amostras biológicas ou isolados fúngicos para identificação ou confirmação do diagnóstico até o nível de espécie do agente causador da doença.
O Ministério da Saúde recomenda que, diante da suspeita clínica, o tratamento deve ser iniciado imediatamente, independentemente do resultado dos exames laboratoriais específicos. O Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde, disponibiliza o complexo lipídico de anfotericina B para o tratamento das infecções fúngicas graves.
O fungo Candida auris é um agente causador de doença oportunista, relatado pela primeira vez no Japão em 2009, em um caso de otomicose. Desde então, foi relatado em todos os continentes, com exceção da Antártica.
O primeiro caso de C. auris no Brasil foi identificado em novembro de 2020, em um paciente de 59 anos, internado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) em Salvador, na Bahia. O fungo foi detectado após análise técnica pelo Laboratório Central de Saúde Pública Prof. Gonçalo Moniz (Lacen/BA) e pelo Laboratório do Hospital das Clínicas de São Paulo.
O terceiro e maior surto causado pelo fungo no Brasil ocorreu entre novembro de 2021 e fevereiro de 2022, quando nove casos foram registrados em um hospital de Recife, em Pernambuco.
O C. auris é um fungo emergente que representa uma grave ameaça à saúde global, pois algumas de suas cepas podem apresentar resistência aos medicamentos comumente utilizados para tratar infecções por Candida, sendo que alguns estudos apontam que até 90% dos isolados de C. auris são resistentes a fluconazol, anfotericina B ou equinocandinas.
Ao contrário da maioria dos fungos ambientais, o C. auris apresenta tolerância a temperaturas elevadas de 37°C a 42°C. Além disso, conta com uma capacidade de sobreviver a condições ambientais adversas por longos períodos, adaptando-se fora do hospedeiro humano.
Essas características aumentam o risco de surtos hospitalares, uma vez que a colonização e as infecções podem ter origem em fontes ambientais, como dispositivos médicos contaminados e mãos de profissionais de saúde.
O fungo pode causar infecção na corrente sanguínea e outras infecções invasivas que podem ser fatais, principalmente em pacientes imunocomprometidos ou com comorbidades. Outro aspecto negativo é que os pacientes podem permanecer colonizados por esse microrganismo por muito tempo, sem infecção, favorecendo a propagação para outras pessoas e a ocorrências de surtos em serviços de saúde.
Desde março de 2017, o Brasil possui um documento com orientações de como os serviços de saúde (hospitais, clínicas, laboratórios, entre outros) devem proceder para prevenir e controlar a disseminação fungo.
Fungos do gênero Aspergillus estão associados a uma doença infecciosa chamada aspergilose. Eles são encontrados frequentemente no ambiente e com
dispersão favorecida por construções e reformas em geral.
A principal forma de infecção é pela via inalatória, ao respirar. Entre os hospedeiros suscetíveis estão principalmente pessoas alérgicas, imunodeprimidos ou pacientes com sequelas pulmonares causadas por tuberculose.
A grande maioria dos indivíduos não desenvolve doenças por aspergillus, apesar da inalação. Em geral, a aspergilose pulmonar invasiva (API) tem sido considerada uma
doença de pacientes imunocomprometidos, incluindo os transplantados, particularmente os de pulmão, pessoas com câncer no sangue ou baixa contagem de neutrófilos no sangue prolongada.
Entre os pacientes não pertencentes aos grupos classicamente considerados de risco, destacam-se os pacientes críticos, pessoas com cirrose, doença pulmonar
obstrutiva crônica, hepatite aguda alcoólica, com queimaduras extensas ou com formas graves de gripe.
Desde o início da pandemia de Covid-19, foram relatados inúmeros casos de aspergilose pulmonar que podem levar ao agravamento da insuficiência respiratória e aumento da letalidade.
A aspergilose pulmonar associada à Covid-19 (APAC) tem sido descrita em todos os continentes, com estudos mais robustos na Europa. A doença apresenta frequência variável chegando até 30%. Na América Latina, a sua real prevalência ainda é desconhecida, sendo descritos apenas relatos de casos no Brasil, México e Argentina.
Sporothrix brasiliensis é um fungo que vem causando cada vez mais infecções em gatos e pessoas no Brasil e em outras partes da América do Sul. Antes da década de 1990, Sporothrix brasiliensis era conhecido apenas no sudeste do Brasil, próximo de São Paulo e Rio de Janeiro. Em 2018, casos da infecção fúngica causada por este fungo, a esporotricose, foram identificados em mais oito estados nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.
De acordo com a Fiocruz, o fungo causador da esporotricose geralmente habita o solo, palhas, vegetais e também madeiras, podendo ser transmitido por meio de materiais contaminados, como farpas ou espinhos.
Embora a esporotricose já tenha sido relacionada a arranhaduras ou mordeduras de cães, ratos e outros pequenos animais, os gatos são os principais animais acometidos e podem transmitir o fungo para os seres humanos por meio de arranhões, mordidas e contato direto da pele lesionada. Segundo a Fiocruz, não há registro de casos de transmissão da doença entre seres humanos.
Nos gatos, as manifestações clínicas da esporotricose são variadas. Os sinais mais observados são as lesões ulceradas na pele, ou seja, feridas profundas, geralmente com pus e sangue, que não cicatrizam e costumam evoluir rapidamente. A esporotricose está incluída no grupo das micoses subcutâneas.
No ser humano, a doença se manifesta na forma de lesões na pele, que começam com um pequeno caroço vermelho, que pode virar uma ferida. Geralmente aparecem nos braços, nas pernas ou no rosto, às vezes formando uma fileira de carocinhos ou feridas.
O diagnóstico adequado pode ser feito a partir de consulta com o médico dermatologista. A escolha do tratamento para a esporotricose depende essencialmente da forma clínica da doença e do estado imunológico do paciente.
A fusariose é uma doença infecciosa provocada por fungos oportunistas do gênero Fusarium, que estão presentes no ambiente na forma de esporos, de saprófitas do solo e em patógenos comuns de plantas e cereais.
Os fungos do gênero Fusarium têm sido relacionados a infecções localizadas ou invasivas em pacientes imunocomprometidos, sobretudo naqueles portadores de câncer no sangue ou submetidos ao transplante de medula óssea, bem como em pessoas imunocompetentes. A infecção em humanos por Fusarium tem relação com fatores de risco do indivíduo, como imunossupressão, tratamento prévio com esteroides e o uso de lentes de contatos.
“Outros fungos com potencial gravidade são Aspergillus e Fusarium, mais principalmente em contexto de paciente transplante de medula óssea, que ficam com a imunidade bem reduzida por tempo prolongado”, afirma o médico do Hospital das Clínicas.
De acordo com o Ministério da Saúde, foram identificadas mais de 200 espécies desse fungo, sendo o Fusarium solani o mais comum e o mais virulento em seres humanos (40-60%), seguido por outros complexos como o Fusarium oxysporum (~20%), Fusarium fujikuroi e Fusarium moniliforme (~10%).
A principal forma de contágio acontece pela inalação de esporos fúngicos presentes no ambiente ou por meio da inoculação direta do fungo na pele, por exemplo ferida cirúrgica, queimaduras, úlceras profundas ou celulite facial.
Os sintomas clínicos desta doença não são específicos e podem apresentar desde febre persistente a diminuição dos níveis de consciência, mucosa avermelhada e inchaço nasal, palidez e descoloração da mucosa, taquicardia, dores no corpo, tosse seca, falta de ar e olhos vermelhos.
O diagnóstico é clínico e laboratorial. Os antifúngicos utilizados na maioria das infecções causadas por Fusarium são o voriconazol, posaconazol, natamicina, anfotericina B.
O Dicionário de Epidemiologia da Associação Internacional de Epidemiologia define uma pandemia como “uma epidemia que ocorre em todo o mundo, ou em uma área muito ampla, cruzando fronteiras internacionais e geralmente afetando um grande número de pessoas”.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), pandemia é a disseminação mundial de uma nova doença. O termo passa a ser usado quando uma epidemia, surto que afeta uma região, se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa.
Um dos empecilhos para que haja uma pandemia causada por um fungo é a incapacidade de uma rápida disseminação desse tipo de microrganismo, como explica o pesquisador Manoel Marques Evangelista Oliveira, da Fiocruz.
“Quando a gente tem um caso de uma pandemia, como tivemos a Covid-19, precisam ocorrer diversos casos – basicamente são epidemias em diversos locais do mundo, que a gente tenha uma forma de transmissão rápida, que pode ser via ser humano a ser humano, mas não temos fungo com esse perfil”, diz.
O especialista pondera que a rápida transmissão também poderia ser causada a partir de um vetor, mas que isso dependeria de adaptações que não foram observadas cientificamente até o momento.
“Poderia ser via um vetor, até o momento não temos descrito nenhum vetor que poderia ter essa capacidade rápida de disseminação de um fungo ou uma doença fúngica para que possamos ter uma pandemia”, explica. “Isso não impede que possamos ter uma pandemia no futuro, se tivermos algum fungo que se adapte, conforme foi colocado pela série. Se houvesse uma forma de transmissão da formiga para o humano, por exemplo, poderíamos ter uma rápida pandemia de fungos, por que temos formigas em todos os lugares”, conclui.