A guerra entre Rússia e Ucrânia pode levar até 49 milhões de pessoas à fome ou a condições semelhantes por causa de seu impacto devastador na oferta e nos preços globais de alimentos, informou a Organização das Nações Unidas (ONU), no último grave alerta sobre a insegurança alimentar mundial.
Com seu solo fértil e extensas terras agrícolas, a Ucrânia tem sido descrita como um dos celeiros do mundo. Mas o ataque da Rússia colocou uma enorme pressão sobre a produção e as exportações de alimentos do país. Os efeitos estão sendo sentidos em todo o mundo.
O bloqueio russo aos portos ucranianos já elevou os preços globais dos alimentos e ameaça causar uma catastrófica escassez de alimentos em partes do mundo, disse a ONU.
“Para as pessoas ao redor do mundo, a guerra, juntamente com outras crises, ameaça desencadear uma onda sem precedentes de fome e miséria, deixando um caos social e econômico em seu rastro”, disse o secretário-geral da Organização, António Guterres, na quarta-feira (8).
A invasão russa afetou toda a produção de alimentos e cadeia de suprimentos da Ucrânia: da semeadura à colheita e à exportação.
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que entre 20% e 30% das terras agrícolas da Ucrânia permanecerão não plantadas ou não colhidas este ano por causa da guerra.
Isso ocorre em parte porque grandes áreas das terras agrícolas da Ucrânia – cerca de metade da área plantada com trigo de inverno e cerca de 40% da área plantada com centeio – estavam sob ocupação russa em março, interrompendo a época de semeadura.
Mas a guerra também está causando escassez de trabalhadores, por causa do grande número de pessoas que fugiram de suas casas ou se envolveram nas unidades voluntárias das forças armadas da Ucrânia.
As sanções internacionais impostas contra a Rússia por sua invasão da Ucrânia também tiveram um impacto no fornecimento global de combustível, fertilizantes e produtos agrícolas.
Autoridades ucranianas e algumas autoridades internacionais acusaram a Rússia de roubar grãos e outras commodities do país em áreas que ocupa.
Denys Marchuk, vice-presidente da União Pública do Conselho Agrário da Ucrânia, disse em comunicado na quarta-feira que a Rússia “roubou cerca de 600.000 toneladas de grãos” de agricultores ucranianos.
Marchuk disse que o alimento foi roubado de regiões ocupadas do sul da Ucrânia e depois transportado para portos no território ocupado pela Rússia da Crimeia, de onde é então levado para o Oriente Médio.
O Kremlin negou as acusações, chamando-as de “notícias falsas”. No entanto, na quarta-feira, o líder da administração militar apoiada por Moscou para a região de Zaporizhzhia, no sul da Ucrânia, se gabou de vagões de trem cheios de grãos ucranianos partindo da cidade ocupada pelos russos de Melitopol para a Crimeia.
No Solovyov, uma plataforma de vídeo online, Yevhen Balytskyi deixou claro que o plano é aumentar ainda mais essas exportações. “Pode-se prever que em um futuro próximo essas entregas serão aumentadas centenas de vezes”, disse ele.
Fotos de satélite do porto de Sebastopol, na Crimeia, fornecidas pela Maxar Technologies no mês passado, pareciam mostrar navios russos sendo carregados com grãos ucranianos. Outro conjunto de imagens de satélite revelou que um dos navios chegou ao porto sírio de Latakia no mês passado, sua segunda viagem em quatro semanas.
Em tempos normais, a Ucrânia exportaria cerca de três quartos dos grãos que produz. Segundo dados da Comissão Europeia, cerca de 90% dessas exportações são feitas por via marítima, a partir dos portos ucranianos do Mar Negro.
A Rússia está atualmente bloqueando o acesso marítimo aos portos da região. o que significa que mesmo o grão que ainda está sob controle ucraniano não pode ser exportado para os muitos países que dependem dele.
A Ucrânia tentou aumentar suas exportações ferroviárias de grãos para compensar, mas isso está se mostrando desafiador por causa de questões logísticas. Por exemplo, os trens da Ucrânia circulam em trilhos um pouco mais largos do que os da maior parte da Europa, o que significa que os grãos precisam ser movidos de um conjunto de vagões para outro na fronteira.
As acusações de que a Rússia está usando comida como arma de guerra vêm aumentando desde que surgiram os primeiros relatos em março de que grãos foram roubados por tropas russas.
A chefe da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse na quarta-feira que a comida se tornou parte do “arsenal de terror” do Kremlin. “Este é um cerco frio, insensível e calculado por Putin em alguns dos países e pessoas mais vulneráveis do mundo… A comida agora se tornou parte do arsenal de terror do Kremlin”, disse ela.
A ideia de usar a escassez de alimentos para despertar o medo tem conotações particularmente sombrias na Ucrânia por causa de sua profunda memória institucional de uma fome mortal de 1932-1933.
Conhecido como Holodomor, ou Fome do Terror, foi artificialmente projetado pelo líder soviético Joseph Stalin, que removeu os estoques de alimentos dos camponeses ucranianos, levando à morte de milhões de pessoas.
Sob a lei ucraniana, o Holodomor é considerado um ato de genocídio, destinado a forçar os ucranianos à submissão e impedir os esforços para construir um estado ucraniano independente.
As crianças aprendem sobre isso na escola e o país mantém um minuto de silêncio durante o Dia Anual da Lembrança do Holodomor. Há memoriais em todo o país e um grande museu dedicado à época e suas vítimas em Kiev.
A crise na Ucrânia está tendo um efeito indireto em todo o mundo, porque tanto a Ucrânia quanto a Rússia são grandes exportadores de alimentos. Os preços globais dos alimentos aumentaram 17% desde janeiro, segundo a FAO. Os preços dos cereais subiram mais de 21%.
A importância da Rússia e da Ucrânia para o abastecimento global de alimentos não pode ser subestimada. Quase um terço das exportações mundiais de trigo e 60% das exportações mundiais de óleo de girassol vieram dos dois países no ano passado.
De cada 100 calorias de alimentos comercializados em todo o mundo, 12 vêm da Rússia e da Ucrânia, de acordo com o International Food Policy Research Institute.
O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky alertou que milhões de pessoas em todo o mundo podem morrer de fome se a Rússia não permitir que a Ucrânia exporte grãos de seus portos.
“Não podemos exportar nosso trigo, milho, óleo vegetal e outros produtos que têm desempenhado um papel estabilizador no mercado global. Isso significa que, infelizmente, dezenas de países podem enfrentar uma escassez física de alimentos. Milhões de pessoas podem passar fome”, disse ele.
Um novo relatório da FAO e do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PAM) divulgado esta semana alertou que a guerra na Ucrânia pode levar até 47 milhões de pessoas à “insegurança alimentar aguda”, elevando o número total de pessoas em risco de insegurança alimentar grave para 323 milhões.
Segundo dados da FAO, alguns dos países mais vulneráveis do mundo estão entre os mais dependentes das importações da Ucrânia. Líbano, Tunísia, Somália e Líbia dependem da Ucrânia para pelo menos metade de suas importações de trigo.
O programa da ONU para combater a insegurança alimentar compra cerca de metade de seu trigo da Ucrânia a cada ano.
Líderes internacionais estão puxando as cordas diplomáticas enquanto tentam pressionar Moscou a um acordo que desbloquearia as exportações. Autoridades da ONU elaboraram um plano para retirar grãos do porto ucraniano de Odessa através do Mar Negro, com a Turquia atuando como garantidora do acordo.
O governo turco disse estar aberto a negociar um acordo com a Rússia e o ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlut Cavusoglu, se encontrou com seu colega russo Sergey Lavrov em Ancara na quarta-feira para discutir a questão.
Embora nenhum acordo tenha saído das negociações, Cavusoglu disse que “há várias ideias” sobre como estabelecer um corredor aberto para as exportações de grãos da Ucrânia e que um plano da ONU é “razoável e pode ser implementado”, mas requer mais negociações.
O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse na quinta-feira que nenhum acordo foi alcançado sobre as exportações de grãos ucranianos para a Turquia ou o Oriente Médio, mas que o trabalho está em andamento.
O Kremlin rejeitou anteriormente as acusações de que a Rússia está obstruindo a exportação de grãos da Ucrânia e, em vez disso, culpou o Ocidente e Kiev.