Passados 23 anos desde a sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um conjunto de regras, boas práticas e definições fiscais que visa garantir um maior controle sobre os gastos públicos, o Brasil passa por novas discussões sobre responsabilidade com as contas públicas e que deve se encaminhar para o desfecho, na quarta-feira (24), com a votação, em plenário da Câmara dos Deputados, do projeto para um novo marco fiscal.
José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP) e um dos criadores da LRF, em entrevista exclusiva à CNN, considera que o atual debate tem sido marcado por “confusões conceituais”.
Segundo Afonso, enquanto cada política (fiscal e monetária) e cada respectiva autoridade conduzir suas ações “sem mínima harmonia, o Brasil pagará um preço muito caro para chegar ao equilíbrio macroeconômico”.
Sobre o novo regramento discal, Afonso avalia que o projeto é um reforço ao regime fiscal específico da União e que visa “acima de tudo” acalmar a ansiedade de investidores domésticos sobre a dívida pública interna.
O professor avalia ainda que as novas regras devem jogar luz sobre dois desafios antigos, mas que agora é preciso enfrentar: governança fiscal e consolidação das leis.
“Primeiro, para fazer com que esta nova lei e as outras sejam realmente cumpridas, precisamos aprimorar os mecanismos de gestão e de controle, e isso poderia passar por criar um colegiado nacional, com diferentes ministérios e governos, como pode ser uma proposta inicial nossa com presidente do TCU, Bruno Dantas. Segundo, precisamos criar um código fiscal para consolidar todas as normas, em demasia no texto constitucional, em muitas e diferentes leis, da LRF à nova, e também para cobrir lacunas, como a lei geral de orçamento de março de 1964”, explica.
A LRF surgiu no ano de 2000, com a estabilização macroeconômica oriunda do Plano Real (1994). Em um de seus pontos, a lei previa o estabelecimento de limites para o montante da dívida consolidada da União, dos estados e dos municípios.
Contudo, posteriormente, resoluções estabeleceram tais limites somente para estados e municípios, e não para a União.
A punição em caso de descumprimento das metas estabelecidas pelo projeto do novo marco fiscal foi um ponto de preocupação entre economistas quando a versão original do texto foi apresentada, uma vez que ela havia reduzido as exigências e fez com que especialistas considerassem as regras muito brandas para garantir que os presidentes se comprometessem, de fato, em respeitar os limites de despesa e endividamento estipulados.
Questionado sobre a demanda de especialistas e do mercado por punições mais rígidas, Afonso entende que “crime fiscal não é matéria para esta lei complementar”. O professor lembra que a tipificação de crimes criados por ocasião da Lei de Responsabilidade Fiscal segue em vigor e “ninguém propôs mudar”.
“Esta é mais uma das várias confusões conceituais que vêm marcando o atual debate em que menos se consultam especialistas em finanças públicas, e se prefere palpites dourados por ideologia”. De maneira categórica, Afonso pontua que importa muito mais prevenir do que punir.
“Comparando com situação do dia a dia, se fosse seguir o fundamentalismo ora defendido, as estradas não deveriam ter acostamento. É natural que possa haver afastamento das metas porque a economia não é linear, às vezes entra em recessão, às vezes se tem situações extremas, como uma pandemia ou uma guerra. Nestes casos, o mais importante é identificar e comunicar o desvio e explicar as providências que se tomará para depois voltar a normalidade”, explica o especialista.
A versão atual do projeto, que será votada pela Câmara, criou gatilhos automáticos e endureceu as punições caso o Executivo não cumpra as metas de gastos que serão estipuladas anualmente no Orçamento.
Ao ser apresentado, a avaliação feita por economistas ouvidos pela CNN, foi de que o projeto gerava dúvidas com relação à arrecadação, uma vez que sua sustentabilidade dependeria de um incremento das receitas de até R$ 200 bilhões, segundo cálculos.
Sobre o tema, José Roberto Afonso questiona: “Imagina se a Fifa definisse as regras de um jogo de futebol anunciando que seria preciso marcar 3 ou 4 gols por partida. Faz algum sentido?”.
O professor afirma que um regime fiscal deve trazer os instrumentos à disposição das autoridades e dos parlamentares que definirão a atuação do governo, em torno das diretrizes orçamentárias e do próprio orçamento.
“Por confusão conceitual e talvez ansiedade excessiva do mercado financeiro – e acho que seguida por autoridades econômicas – se está tentando antecipar o resultado no projeto que define as regras do jogo. É até possível fazer isso, mas não há como assegurar que isso venha acontecer porque não há como assegurar hoje quais serão as condições econômicas, sociais e políticas de amanhã”, diz Afonso.
Ao avaliar a trajetória da Lei de Responsabilidade Fiscal, o professor a considera como um “sucesso enorme para criar uma cultura e para reduzir a dívida”, naqueles casos dos governos que se submeteram a suas imposições, os estados e os municípios.
“Hoje, os estados devem menos da metade do que quando promulgada a lei. As prefeituras devem fechar este ano com mais caixa do que dívida. Já o governo federal, nunca aceitou ter limite de dívida e, curiosamente, o mercado financeiro nunca exigiu que isso fosse feito.”
Afonso diz que o governo optou por apostar em criar um limite autônomo de teto de gasto e, agora, criar uma nova sistemática para dívida federal.
“Ou seja, em termos de dívida, continuaremos tendo dois ‘Brasis’: o dos governos regionais, submetidos ao crivo da LRF, com dívida comprovadamente sob controle e mesmo assim assegurando serviços básicos, como ensino, saúde e mesmo segurança, e o do governo federal, que seguirá fugindo da LRF, porque prefere seguir sua própria sistemática”, explica.
O embate entre o governo federal e o Banco Central (BC) sobre o atual patamar da taxa básica de juros, a Selic, e as possibilidades para o início de um ciclo de queda tem feito parte do cotidiano do debate público.
O presidente do BC, Roberto Campos Neto, em entrevista à CNN, afirmou que a taxa de juros estar em um patamar alto não é culpa do Banco Central, mas sim da dívida do governo.
Perguntado sobre como avalia a condução da política monetária praticada pela instituição e se a considera “dura”, Afonso disse que “duro é não ter política econômica”.
“Espero que autoridades monetárias voltem a se converter em autoridades econômicas, de modo que, junto com as autoridades fazendárias, possam coordenar e harmonizar suas ações”.
Em sua visão, assim como outras variáveis, as taxas de juros devem refletir a busca dos objetivos de política econômica que, lembra Afonso, constam na lei complementar que regulou o Banco Central em 2021 e não se limitam à inflação.
“Neste caso, também não se pode decidir apenas em cima das expectativas ditadas por alguns membros do mercado, até porque, se for para isso, melhor trocar os dirigentes por um sistema automatizado de IA. Ainda confio na inteligência natural das autoridades econômicas”, conclui.
Ao ser solicitado a fazer uma avaliação econômica dos quase seis meses de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Afonso foi sucinto em sua resposta.
“Repor serenidade na gestão da economia foi o traço mais importante, consistente com o movimento maior do governo Lula que foi pacificação político e social do país”.
A nova regra fiscal prevê que — para os exercícios de 2024 a 2027 — os gastos do governo não podem ter crescimento acima de 70% do crescimento da receita.
Em momentos de avanço excepcional da arrecadação, porém, a despesa primária não poderá ter crescimento acima de 2,5% ao ano. Caso haja retração extraordinária, a despesa primária adotará outro gatilho e não poderá crescer mais que 0,6% ao ano.
O plano ainda estabelece metas de superávit primário. A ideia é de que o governo tenha déficit primário zero em 2024, superávit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2025 e de 1% em 2026.
Se a meta de superávit primário não for atingida e o resultado ficar fora da variação tolerável, haverá obrigação de redução do crescimento de despesas para 50% do crescimento da receita no ano seguinte.