Quantos anos podemos regredir na história da humanidade e ainda encontrar vestígios dos vírus que nos afetam atualmente? Foi com essa pergunta em mente que o biólogo Marcelo Briones detectou espécies virais em ossos de neandertais que viveram há mais de 50 mil anos.
Pesquisador do Centro de Bioinformática Médica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele conduziu um estudo que analisou o material genético das amostras e foi publicado no dia 27 de maio no periódico Viruses.
Na pesquisa, a leitura de sequências de projetos de genoma neandertal permitiu detectar vestígios de DNA do herpesvírus, adenovírus e papilomavírus, fazendo com que esses sejam os vírus humanos mais antigos já encontrados. Eles são caracterizados por causar infecções persistentes no organismo.
Em 2010, outro estudo publicado no periódico Medical Hypotheses sugeriu que esses vírus poderiam ter contribuído para a extinção dos neandertais. No artigo, os pesquisadores propõem que o vírus teria sido levado aos neandertais pelos Homo sapiens, que saíram do continente africano e tiveram contato com a outra espécie na Europa há cerca de 80 mil anos, carregando patógenos para os quais o sistema imunológico neandertal não estava preparado.
Os autores desse estudo especularam que o vírus da herpes teria sido esse agente contagioso, citando ainda o adenovírus e o papilomavírus, entre outros patógenos.
“Você tem, por exemplo, o herpes, que pode dar complicações na gravidez e no parto. Apesar de não ser um vírus fatal, ele pode estar associado com aborto espontâneas e morte no parto”, diz Briones em entrevista à GALILEU. “Então ele não é fatal em termos, mas ele pode atrapalhar a eficiência reprodutiva.”
Antes de confirmar se os vírus teriam desempenhado um papel na extinção dos neandertais, seria preciso provar que a espécie foi infectada. Para isso, era necessário encontrar ao menos os genomas desses vírus nos restos mortais – é aí que entra a pesquisa de Briones.
Reconstrução facial de um Homo neanderthalensis — Foto: Wikimedia Commons/Hermann Schaaffhausen
As sequências de DNA virais foram baixadas do banco de dados Sequence Read Archive (SRA), do Centro Nacional de Informações sobre Biotecnologia (NCBI), nos Estados Unidos. As informações utilizadas correspondem a amostras de dois neandertais do sexo masculino que viveram na caverna Chagyrskaya, ao sul da Sibéria, na Rússia, e foram infectados com os três vírus ao mesmo tempo.
O vírus da herpes pode causar herpes labial; o adenovírus, sintomas de resfriado; e o papilomavírus, verrugas genitais e câncer, além de ser sexualmente transmissível. A partir do código genético desses vírus, os cientistas brasileiros buscaram vestígios desse material nas sequências do genoma antigo.
O sequenciamento é um processo que determina a ordem das bases nitrogenadas na molécula de DNA. Com exceção de alguns vírus, as informações genéticas de todas as formas de vida existentes no planeta são codificadas em sequências compostas por 4 letras: A (adenina), C (citosina), T (timina) e G (guanina).
Briones destaca o trabalho estatístico da pesquisa. “Tem uma porção de problemas computacionais por trás dessa aventura.” Ao selecionar as leituras das amostras, diversas informações são recolhidas. “Você pega o osso do cara morto na caverna e vem um monte de coisa junto, porque o cadáver se decompôs e as próprias bactérias dele consomem a carne. E aí eu vi que no meio de alguns dos resultados de STAT tinha sequência viral.”
A Sequence Taxonomic Analysis Tool (STAT), do NCBI, é uma ferramenta utilizada para identificar a taxonomia de sequências, analisar metadados de sequenciamento genômico e identificar contaminantes em amostras de DNA ou RNA. Já “leitura” se refere à sequência de pares de bases deduzida a partir de dados gerados pelo sequenciador. Às vezes, os pares de bases são indicadas segundo sua probabilidade e grau de confiança nessa leitura.
Uma sequência de genoma em um banco de dados é identificada a partir de métodos estatísticos e comparação com sequências já conhecidas, e sua similaridade é calculada e pontuada. As sequências cuja pontuação está acima de um nível pré-definido e que atendem determinados critérios são consideradas para a identificação.
Tratando-se de vírus de milhares de anos, eles não são idênticos àqueles observados em infecções atuais devido a mutações, mas ainda podem ser reconhecidos. Após comparar as sequências antigas com vírus atuais, a equipe de pesquisa também eliminou a possibilidade de a contaminação em neandertais ser resultado de uma manipulação recente dos ossos, seja por um humano ou por algum animal que tenha se alimentado do cadáver.
Os pesquisadores pretendem recriar os vírus antigos em laboratório para entender como eles afetam humanos antigos, mas há especialistas que veem isso como uma tarefa desafiadora.
“As ferramentas atuais usadas para autenticar resultados de DNA antigos de humanos podem não se aplicar a vírus, que têm fitas de DNA mais curtas por padrão”, argumenta Sally Wasef, da Universidade de Tecnologia de Queensland, na Austrália, em entrevista ao site New Scientist.
"Eu vou sintetizar o genoma desses vírus, fazer ele sintético em laboratório igual ao do Neandertal, e aí vou transfectar células com o vírus”, explica Briones. “Vamos fazer um Jurassic Park de vírus", brinca o pesquisador.
Para recriar os patógenos, Wasef aponta que seria necessário ter uma compreensão total de como o DNA do vírus é danificado e como reconstruir um genoma viral completo com as partes recuperadas, bem como levar em conta a interação entre vírus e hospedeiro em um ambiente tão diferente.
Além de ampliar o conhecimento sobre evolução viral de doenças, o estudo possibilita novas abordagens na área da saúde, em especial vacinas e tratamentos antivirais e, possivelmente, contribuir para o entendimento a respeito da extinção dos parentes mais próximos da espécie humana.